TAXA DE RESÍDUOS SÓLIDOS DOMICILIARES INSTITUÍDA NO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO – LEI MUN. Nº 13.478/2002 – INCONSTITUCIONALIDADE

Carlos Alberto Del Papa Rossi 

 

Introdução

 

       Tendo em vista as recentes discussões sobre a “Taxa do Lixo” (Taxa de Resíduos Sólidos Domiciliares – TRSD), instituída em São Paulo através da Lei Municipal nº 13.478/2002, no presente trabalho faremos uma breve análise da referida lei apontando os motivos pelos quais acreditamos que a exação não atende ao disposto no artigo 145, II, da Constituição Federal. Ademais, demonstraremos que tal como já reconheceu o Eg. Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, o tributo está sendo cobrado em duplicidade, afrontando o princípio da moralidade pública insculpido no artigo 37, caput, da Carta Constitucional de 1988.

                          

       1. A TRSD e a divisibilidade

 

       A Constituição Federal, em seu artigo 145, inciso II, outorgou a todos os entes político-constitucionais competência para a instituição de taxas:

 

 “Art. 145 – A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos:

                      …

II – taxas, em razão do exercício do poder de polícia, ou pela utilização efetiva, ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis prestados ao contribuinte ou postos à sua disposição.”

 

       Destarte, só está autorizada a instituição de uma taxa de serviço público se este for específico e divisível, não bastando apenas um desses atributos.

Pela especificidade a Lex Suprema exige que a atuação estatal seja relacionada de forma direta a contribuinte certo. Deve ser possível identificar o particular ou o grupo que usufrui da atuação estatal, pois deles o tributo será exigido com o objetivo de repor nos cofres públicos o respectivo montante despendido.

       Pensamos que no que se refere à especificidade a taxa em comento não se encontra viciada, pois é devida pelo particular que faz uso ou tem à sua disposição os serviços públicos relacionados com a coleta de lixo.

       Por outro lado, a exação em destaque cai por terra no exato momento em que coloca em teste sua divisibilidade.

Como se verifica da Lei Mun. 13.478/02, seu artigo 84 estabelece como fato gerador do tributo “a utilização potencial dos serviços divisíveis de coleta, transporte, tratamento e destinação final de resíduos sólidos domiciliares, de fruição obrigatória, prestados em regime público”. A mera leitura dessa disposição demonstra que a taxa (TRSD), na verdade, busca remunerar vários serviços, e não apenas o de coleta de lixo.

       Admitimos que o serviço de coleta de resíduos, conforme a sistemática de apuração, pode vir a ser considerado divisível, bastando o legislador municipal utilizar sua criatividade e observar os mandamentos constitucionais para eleger a melhor forma de disciplinar a cobrança, de modo que seja feita de forma proporcional (divisível) ao volume de resíduos coletado de cada unidade geradora.

       Ocorre que, tal como consta do referido artigo 84, também constitui fato gerador da taxa – TRSD –, além da coleta, a utilização dos serviços de transporte, tratamento e destinação final dos resíduos. Com a devida vênia, estes outros serviços não são passíveis de divisão proporcional ao uso de cada um dos contribuintes (usuários). Assim, ainda que se admita a possibilidade de se considerar o serviço de coleta divisível, pelo simples fato de a taxa cobrar conjuntamente a utilização dos serviços de transporte, tratamento e destinação dos resíduos, impossível reconhecer a divisibilidade da atuação municipal.

       Com efeito, depois de os resíduos serem coletados não é possível apurar a distância percorrida pelo veículo que faz a coleta entre as respectivas unidades geradoras e os locais de tratamento e destino final. Isto, por si só, evidencia a impossibilidade de dividir o custo do transporte, do tratamento e da destinação entre os usuários desses serviços. Assim, a cobrança nunca será feita de forma proporcional à fruição do serviço público, uma vez que estes últimos – transporte, tratamento e destinação de lixo – não são divisíveis.

       Apenas a título de argumentação, ainda que supuséssemos que todos os serviços descritos no citado artigo 84 são passíveis de divisão proporcional – o que não é verdade –, considerando-se a forma de cobrança estabelecida pela referida lei municipal, o vício por desrespeito ao critério da divisibilidade subsistiria.

       Depois de o artigo 83 da Lei Municipal nº 13.478/2002 especificar a destinação dos valores arrecadados pela Taxa de Resíduos Sólidos Domiciliares – TRSD, o artigo 85, com precisão, fixa a base de cálculo do tributo: o custo dos serviços de coleta, transporte e tratamento final do lixo, verbis:

 

“Art. 83 – Fica instituída a Taxa de Resíduos Sólidos Domiciliares – TRSD, destinada a custear os serviços divisíveis de coleta, transporte, tratamento e destinação final de resíduos sólidos domiciliares, de fruição obrigatória, prestados em regime público, nos limites territoriais do Município de São Paulo.”

 

“Art. 85 – A base de cálculo da Taxa de Resíduos Sólidos Domiciliares – TRSD é equivalente ao custo dos serviços a que se refere o artigo 83.

 

       Efetivamente, a base de cálculo de uma taxa, seja ela de serviço público, seja decorrente da atividade de polícia administrativa, nunca poderá ser outra senão o custo da Administração para a realização da respectiva atuação estatal a ser remunerada. Nesse sentido, tivemos a oportunidade de expor, verbis:

 

“…, não se pode adotar como base de cálculo das taxas critério distinto do valor da atuação estatal, pois esta é um fato único. Noutras palavras, no caso de taxas não se apura uma base de cálculo para cada fato. (…). Daí, a base de cálculo das taxas, em qualquer de suas modalidades, será sempre o valor da atuação estatal, expresso em moeda ao qual se aplicará determinada alíquota, para se alcançar o valor do tributo”.[1]

 

       Outra não é a posição de Aires F. Barreto quando predica que, verbis:

 

“…, nas taxas a base de cálculo é única: o valor da atuação estatal. Não há a apuração de base de cálculo para cada fato. Em sendo a base de cálculo o valor da atuação do Estado, fato interno à Administração – que nada tem a ver com a atuação do particular, e portanto não toma em contra atributos inerentes ao sujeito passivo ou relativos à matéria sobre a qual se refere a taxa – é fato único, de dimensão única”.[2]

 

       Apesar de a base de cálculo estar corretamente estabelecida na lei municipal em análise, o valor cobrado a título de taxa não é apurado proporcionalmente ao uso.

       Como se observa dos artigos 88 e 89 da lei municipal, para o contribuinte efetuar o recolhimento da taxa – TRSD – deve realizar o cálculo da seguinte forma:

 

“Art. 88 – Para cada Unidade Geradora de Resíduos Sólidos Domiciliares – UGR corresponderá um cadastro de contribuinte.

Parágrafo único – Considera-se Unidade Geradora de Resíduos Sólidos Domiciliares – UGR qualquer imóvel localizado em logradouro ou via atendido pelos serviços previstos no artigo 83 desta lei.”


“Art. 89 – Cada Unidade Geradora de Resíduos Sólidos Domiciliares – UGR receberá uma classificação específica, conforme a natureza do domicílio e o volume de geração potencial de resíduos sólidos, de acordo com as seguintes tabelas e faixas:

Domicílios Residenciais Faixa

UGR especial Imóveis com volume de geração potencial de até 10 litros de resíduos por dia;

UGR 1 Imóveis com volume de geração potencial de mais de 10 e até 20 litros de resíduos por dia;

UGR 2 Imóveis com volume de geração potencial de mais de 20 e até 30 litros de resíduos por dia;

UGR 3 Imóveis com volume de geração potencial de mais de 30 e até 60 litros de resíduos por dia;

UGR 4 Imóveis com volume de geração potencial de mais de 60 litros de resíduos por dia;

Domicílios Não-Residenciais Faixa

UGR 1 Imóveis com volume de geração potencial de até 30 litros de resíduos por dia;

UGR 2 Imóveis com volume de geração potencial de mais de 30 e até 60 litros de resíduos por dia;

UGR 3 Imóveis com volume de geração potencial de mais de 60 e até 100 litros de resíduos por dia;

UGR 4 Imóveis com volume de geração potencial de mais de 100 e até 200 litros de resíduos por dia;

 

    Parágrafo único – Para cada faixa de UGR prevista no ‘caput’ deste artigo corresponderão os seguintes valores-base da TRSD:

 

Domicílios Residenciais Valor Base por mês

UGR especial R$ 6,14

UGR 1 R$ 12,27

UGR 2 R$ 18,41

UGR 3 R$ 36,82

UGR 4 R$ 61,36

 

Domicílios Não Residenciais Valor Base por mês

UGR 1 R$ 18,41

UGR 2 R$ 36,82

UGR 3 R$ 61,36

UGR 4 R$ 122,72”.

 

       Da singela leitura das disposições supra transcritas percebe-se, sem nenhum esforço, a contradição existente entre o parágrafo único do artigo 85 e o artigo 89 da lei municipal em apreço. Isto porque a Taxa de Resíduos Sólidos Domiciliares – TRSD não está sendo exigida de acordo com a proporcionalidade referida no parágrafo único do citado artigo 85.

       O artigo 85 da Lei Municipal nº 13.478/2002, em seu parágrafo único, estabelece que “a base de cálculo a que se refere o ‘caput’ deste dispositivo será rateada entre os contribuintes indicados no artigo 86, na proporção do volume de geração potencial de resíduos sólidos domiciliares”.

       Com a devida vênia, “ratear” significa “dividir proporcionalmente”.[3] Porém, apesar de o parágrafo único do artigo 85 determinar que o custo do serviço seja rateado entre os contribuintes, da leitura do artigo 89 da mesma Lei Municipal nº 13.478/2002 verifica-se que o custo dos serviços a que se refere o artigo 83 não é rateado. Ou seja, a taxa em comento não está sendo cobrada proporcionalmente ao uso do respectivo serviço público. Ressalte-se, por oportuno, que embora a taxa em debate tenha por fim remunerar os serviços de coleta, transporte, tratamento e destinação dos resíduos, seu cálculo leva em conta apenas o volume, critério este absolutamente impróprio para a aferição da taxa referente aos serviços de transporte e destinação.

       Para melhor evidenciar o vício da exação, nos termos do artigo 89 da Lei Mun. 13.478/2002, uma unidade (Unidade Geradora de Resíduos – UGR) que gere resíduos em volume superior a 10 (dez) e até 20 (vinte) litros por dia é classificada como “Unidade Geradora de Resíduos 1” – UGR 1. Essa UGR 1, segundo consta da tabela do artigo 89, deve recolher, mensalmente, a taxa de R$ 12,27 (doze reais e vinte e sete centavos). Disto já se denota que a UGR 1, que gera 11 (onze) litros de resíduos sólidos, pagará a título de Taxa de Resíduos Sólidos Domiciliares – TRSD os mesmos R$ 12,27 que uma outra UGR 1 que produz 20 (vinte) litros. Percebe-se que mesmo produzindo praticamente o dobro de litros o valor da taxa será o mesmo.

       Qualquer ser humano dotado de um mínimo de capacidade de discernimento consegue perceber que 11 (onze) litros de resíduos é muito menos do que 20 (vinte). Desta sorte, quem gera menos (11 litros) deveria pagar – proporcionalmente – menos do que aquele que produz mais (20 litros).

       É ilógico e incoerente dizer que o custo dos serviços coleta, transporte, tratamento e destinação final de resíduos sólidos domiciliares é rateado proporcionalmente (Lei 13.478/2002, art. 85, par. único) se o valor da taxa para quem gera 11 (onze) litros de resíduos é o mesmo para quem gera 20 (vinte) litros.

       Não bastasse isto, evidenciando ainda mais a falta de critério para a fixação do valor a ser recolhido a título de Taxa de Resíduos Sólidos Domiciliares – TRSD, dividindo-se o valor da taxa pelo volume correspondente verifica-se que a lei em comento não estabeleceu a mesma base de cálculo para todos os contribuintes, pois não é a mesma para todas as Unidades Geradoras de Resíduos – UGRs.

       Confira-se, por exemplo, a tabela para recolhimento da TRSD para UGRs residenciais. Constata-se que dividindo o valor da taxa pelos volumes máximo e mínimo obtém-se diferentes valores de custo por litro, aclarando, ainda mais, que não está se procedendo ao rateio do custo dos serviços:

UGR

Valor da TRSD

Custo Vol. Mínimo

Custo Vol. Máximo

Especial

R$ 6,14

R$ 6,14/litro
R$ 6,14/litro

1

R$ 12,27

R$ 1,11/litro
R$ 0,61/litro

2

R$ 18,41

R$ 0,87/litro
R$ 0,61/litro

3

R$ 36,82

R$ 1,18/litro
R$ 0,61/litro

4

R$ 61,36

R$ 1,00/litro
R$ 1,00/litro

 

       Disto se percebe que as UGRs 1, 2 e 3 que gerarem menos resíduos deverão recolher a Taxa (TRSD) em valor cujo custo por litro é superior ao que as URGS 1, 2 e 3 estarão obrigadas a recolher se produzirem maior quantidade de resíduos.

       Julgando o Recurso de Apelação nº 1.261.676-1 o Eg. Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo ressaltou a desproporção na cobrança do tributo:

 

“A ninguém é dado retribuir por mais e nem menos serviço do que recebe.

A divisibilidade eqüitativa não concorre no caso da nova exação paulistana.

A divisão pode parecer eqüitativa, porque em cada faixa de produção o preço por litro de resíduo corresponde a R$ 0,61.

Na análise acurada que compete ao exegeta, entretanto, ver-se-á que a proporcionalidade fica comprometida na medida em que da abstração da lei passa-se aos casos concretos.

Na primeira faixa, quem produz dez litros diários de resíduos contribui com R$ 0,61 por litro. Mas quem produz 09 contribui com R$ 0,68 por litro, pois continuará pagando a importância de R$ 6,14 mensais. E assim por diante: quem produz 08 contribuirá com R$ 0,76 por litro, quem produz 07 contribuirá com R$ 0,87 por litro, quem produz 06 contribuirá com R$ 1,02 por litro, quem produz 05 contribuirá com R$ 1,22 por litro, quem produz 04 contribuirá com R$ 1,53 por litro, quem produz 03 contribuirá com R$ 2,04 por litro, quem produz 02 contribuirá com R$ 3,07 por litro e, finalmente, que não produz resíduos, como os que os levam a estabelecimentos de reciclagem, contribuirá com R$ 6,14 por litro. Nos dois extremos, portanto, quem nada produz de resíduo sólido domiciliar por dia contribuirá com o mesmo de quem produz 10 litros.

Como se percebe claramente, o custo do serviço por litro avança em progressão geométrica na medida em que diminui a produção, de forma a se fixar a diferença máxima de 100% (cem por cento) entre a primeira e a última das hipóteses de incidência”.[4]

 

       A falta de critério para ratear o custo dos serviços entre os contribuintes implica bases de cálculo diferentes para cada unidade geradora de resíduos, aclarando a indivisibilidade na proporção do uso, o que vicia a tributação por taxa.

       Não bastasse isto, como bem se verifica da tabela constante do artigo 89, a mesma não especifica o valor da taxa para a unidade (UGR) que produza mais de 200 (duzentos) litros de resíduos por dia. Surge a dúvida: quem gera mais de 200 (duzentos) litros de resíduos não está obrigado a recolher a taxa (TRSD) ou deve fazê-lo no mesmo valor daqueles que geram mais de 100 (cem) até 200 (duzentos) litros? Certamente a lei em comento não prestigiou a inafastável divisibilidade da espécie taxa, bem como está tratando igualmente muitos contribuintes que se encontram em situação desigual, pois quem gera 11 litros de resíduos deve recolher menos do que aquele que gera 20 litros, pois isto sim nos parece ser o rateio do gasto municipal em respeito ao princípio da igualdade tributária.

       Com a devida vênia, que tipo de rateio é este veiculado pela Lei Municipal nº 13.478/2002?

       Correta estaria a legislação caso estabelecesse que a taxa – para a coleta – deve ser calculada em R$ X por litro, pois desta forma o contribuinte poderia, através de singelo cálculo aritmético, apurar com exatidão o valor da taxa a ser recolhida e na proporção do serviço utilizado (divisibilidade). Ou seja, a lei estabeleceria como base de cálculo o valor do custo da prestação do serviço por litro, sendo a alíquota o critério de referência pertinente à exação, no caso concreto, o número de litros gerado. Ilustrando, a lei deveria ter estabelecido que a base de cálculo é, por exemplo, R$ 0,05/litro (cinco centavos por litro), sendo que a respectiva alíquota seria o número de litros de resíduos produzidos (critério de referência).

       Sobre o tema já tivemos a oportunidade de escrever que “a base de cálculo da taxa será sempre a mesma para todos os contribuintes, correspondendo ao total gasto pelo Estado com o serviço público, ou com o exercício do poder de polícia. Assim, sendo a base de cálculo única para todos os contribuintes, a alíquota irá variar de um caso para outro considerando-se o critério de referência fixado na lei que, como vimos, poderá ser o metro linear, o metro quadrado, o volume etc. Portanto a alíquota jamais será um valor em moeda, o qual só poderá configurar a base de cálculo”.[5] Este entendimento encontra-se em sintonia com a posição de Aires F. Barreto:

 

“…, a taxa tem na lei a explicitação numérica da base de cálculo (valor por unidade de atuação, enquanto que a alíquota haverá de ser buscada concretamente, caso a caso. O critério de referência estará contido em lei (metro quadrado, testada, quilo, alqueire), mas a apuração do número de metros quadrados, de testada, de quilos, de alqueires, é tarefa de ordem administrativa, nas constatação, investigação mesma do caso concreto”.[6]

            

       Quando o artigo 85 da Lei Mun. nº 13.478/2002, em seu parágrafo único, estabelece que o custo dos serviços a que se refere o artigo 83 será rateado proporcionalmente entre os contribuintes, entra em frontal conflito com o disposto no artigo 89 da mesma lei municipal. Isto porque, neste último (art. 89) se verifica que a cobrança da taxa não é feita na proporção dos serviços públicos utilizados, mas sim com base numa tabela que não resulta da repartição proporcional do gasto municipal entre os contribuintes.

       Como tivemos a oportunidade de expor:

 

 “Além de específico, o serviço público, para autorizar a cobrança de taxa, deve ser divisível, passível de repartição na proporção em que foi utilizado pelo usuário. Noutras palavras, o serviço deve ser mensurável, ou seja, tem que haver a possibilidade de se aferir qual proporção do serviço público foi utilizada pelo particular. Neste ponto, convém uma ressalva, pois existem casos em que, embora o serviço público seja específico e divisível, a cobrança da taxa revela-se ilegal, por exigi-la o Estado sem considerar a proporção do serviço utilizada pelo contribuinte, ou seja, o legislador ordinário elege base de cálculo ou alíquota imprópria para o tributo”.[7]

 

       No caso em estudo, os serviços de coleta, transporte, tratamento e destinação de resíduos sólidos, por serem prestados e taxados conjuntamente, implicam a impossibilidade de se caracterizar a atuação estatal como divisível; a forma pela qual está sendo cobrada a respectiva taxa de serviços desrespeita o artigo 145, II da Constituição Federal e artigo 77 do Código Tributário Nacional.

 

2. Cobrança em duplicidade

 

       Até o ano de 1998 as Leis Municipais nºs. 11.152/91 e 11.960/95, respectivamente, alteraram a redação do artigo 87, da Lei nº 6.989/66, disciplinando o cálculo da “Taxa de Limpeza Pública”, sendo que o artigo 86 da mesma lei descrevia como fato gerador dessa taxa a remoção do lixo, verbis:

 

“Art. 86 – Constitui fato gerador da taxa de limpeza pública a utilização efetiva ou potencial dos seguintes serviços:

I – remoção de lixo domiciliar;

…”.

 

       Tal como ocorre na vigência da recente Lei Municipal nº 13.478/2002, embora o serviço de remoção de lixo fosse dotado dos caracteres da especificidade e divisibilidade, a lei instituidora não considerava, para o cálculo do quantum debeatur, a proporção do serviço efetivamente utilizada, utilizando-se de uma tabela que não implicava a repartição proporcional do custo da administração para remover o lixo coletado.

       Por esse motivo a jurisprudência pátria firmou-se no sentido de que a taxa de limpeza cobrada pelo Município de São Paulo era inconstitucional, resultando uma gigantesca quantidade de decisões contrárias à exação e, conseqüentemente, diminuindo os valores arrecadados aos cofres municipais.

       Para que a Municipalidade de São Paulo não continuasse sendo alvo de inúmeras demandas judiciais – e sendo sempre vencida –, na gestão do Prefeito Celso Pitta foi editada e publicada a Lei Municipal nº 12.782, de 30 de dezembro de 1998, que revogou os artigos 86 a 95 da Lei 6.989/66. Assim, deixou-se de proceder à cobrança da referida “Taxa de Limpeza Pública”. Para não ficar com uma arrecadação menor em razão da revogação dos dispositivos que tratavam da citada taxa (remoção de lixo), a cobrança desta (taxa) foi embutida no Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU, pois majorou-se sua alíquota de 0,6% para 1,0%. Confira-se a “Exposição de Motivos” da referida Lei Municipal, in verbis:

 

“Como é de conhecimento geral, as taxas remuneratórias de serviços vêm sendo contestadas judicialmente, tendo sido declarada, ‘incidenter tantum’, por acórdão do Supremo Tribunal Federal, a inconstitucionalidade do art. 87 e seus incisos e do art. 94, ambos da Lei nº 6.989/66, com a redação dada pela Lei nº 10.921/90. (…).

O presente projeto objetiva revogar a legislação hoje vigente, relativa às Taxas de Limpeza Pública, de Conservação de Vias e Logradouros Públicos e de Combate a Sinistros.

Da aprovação desta alteração, como é de fácil compreensão, decorrerão sérias implicações de ordem orçamentária, com sensível diminuição da receita tributária do Município, colocando em risco a realização dos objetivos da Administração, que, são os de satisfazer as necessidades públicas, mediante os ingressos propiciados pela sociedade.

Assim, propõe-se a adoção, para os Impostos Predial e Territorial Urbano, de uma alíquota única, de 1,0% sobre o valor venal do imóvel. Esta proposta objetiva a recomposição parcial da receita tributária decorrente dos tributos incidentes sobre a propriedade imobiliária, propiciando que a Administração tenha recursos para a realização dos serviços que lhe são afetos. Dela decorrerá redução na carga tributária global.”

 

       Desta forma, o Município de São Paulo continuou a arrecadar o valor da Taxa de Limpeza Pública disfarçadamente, sem se expor ao controle do Poder Judiciário, vez que embutindo a arrecadação da taxa na cobrança do IPTU, impediu que o contribuinte se insurgisse.

       Apesar de a Taxa de Limpeza ter sido embutida na alíquota do IPTU, acreditando-se que os contribuintes teriam esquecido desse detalhe, foi instituída a discutida “Taxa de Resíduos Sólidos Domiciliares – TRSD”. Assim, embora a taxa referente à coleta de lixo já esteja sendo cobrada junto com o IPTU de forma disfarçada, criou-se uma nova taxa decorrente do mesmo serviço de remoção de lixo, o que demonstra a imoralidade da administração municipal (art. 37, caput, CF/88),

       Depreende-se, portanto, que pela Lei Municipal 13.478/2002 os contribuintes estão sendo obrigados a recolher o tributo em duplicidade aos cofres do Município de São Paulo. Isto também não escapou da análise do Eg. Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo:

 

“Em nome da ilustre alcaide MARTA SUPLICY, o douto procurador não encobriu o fato de que, anteriormente, os serviços de limpeza urbana, custeados pela TRSD a partir da nova lei, eram tributados desproporcional e genericamente a toda população paulistana, de sorte a confessar que a retribuição se fazia por imposto, certamente o IPTU, dentre os elencados pela Constituição Federal como de competência dos municípios

Como bem pinçado pela impetrante, as Leis Municipais números 11.152/91 e 11.960/95 alteraram a redação dos artigos 87 da Lei 6.989/66, dando nova administração ao cálculo da Taxa de Limpeza Pública.

A Lei 6.989/66 estabelecia:

Art. 86 – Constitui fato gerador da taxa de limpeza pública a utilização efetiva ou potencial dos seguintes serviços:

I – remoção de lixo domiciliar.

Vencida sistematicamente em demandas que buscavam a nulidade da exação, a Prefeitura de São Paulo, então com CELSO PITTA como Prefeito, acabou por promulgar a Lei Municipal n. 12.782, de 30 de dezembro de 1998, pela qual ficaram revogados os artigos 86 a 95 da Lei 6.989/66.

Para não sofrer perda de arrecadação, entretanto, a administração majorou o IPTU de 0,6% para 1% (f. 59), estando na diferença de 0,4%, conseqüentemente, embutida a remuneração pelos serviços anteriormente custeados por taxa.

EM RESUMO: quer pelo aspecto da desproporção na distribuição do tributo, quer por ressucitação oblíqua da taxa de limpeza, quer por irretorquível afronta ao princípio da moralidade, cabe ser anulada a exigência da Taxa de Resíduos Sólidos Domiciliares (TRSD) à impetrante no exercício de 2003, nos termos da Lei Municipal n. 13.478, de 30 de dezembro de 2002.”

 

       Entendemos, portanto, que ao instituir a Taxa de Resíduos Sólidos Domiciliares pela Lei Municipal nº 13.478/02 o Município de São Paulo passou a exigir o tributo em duplicidade, afrontando o princípio da moralidade administrativa.

 

       Conclusões

 

       Somente os serviços públicos específicos e divisíveis podem dar ensejo à taxação, tal como determina o artigo 145, II, da Constituição Federal.

       A Taxa de Resíduos Sólidos Domiciliares – TRSD foi instituída com o objetivo de remunerar vários serviços públicos prestados conjuntamente, o que implica a impossibilidade de se atender ao critério da divisibilidade.        Ainda que, apenas para argumentar, se imaginasse que todos os serviços remunerados pela taxa (TRSD) são divisíveis, a forma de cálculo eleita pela lei municipal através de faixas de uso obriga o contribuinte que faz menos uso dos serviços recolher o tributo em importe superior, ou seja, em montante desproporcional ao desfrute dos serviços.

       Ao expor os motivos pelos quais a Taxa de Limpeza estava sendo extinta, o Prefeito Celso Pitta ressaltou que o aumento de 0,4% do IPTU destinava-se a cobrir o custo decorrente dos serviços que até então eram suportados pela taxas (extintas), e com isto, a instituição da nova Taxa de Resíduos Sólidos Domiciliares pela Lei Municipal nº 13.478/02 implica a cobrança do tributo em duplicidade.

       Assim, seja em razão da cobrança do tributo em duplicidade (imoralidade administrativa), seja pelo cálculo desproporcional ao serviço prestado, tem-se por inconstitucional a exação.

 

       BIBLIOGRAFIA

 

BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 1979.

BARRETO, Aires F. Base de cálculo, alíquota e princípios constitucionais. 2ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1998.

CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário, 11ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1998.

MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário, 19ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2001.

OLIVEIRA, Régis Fernandes de. Taxas de polícia. São Paulo: RT, 1980.

ROSSI, Carlos Alberto Del Papa. Introdução ao estudo das taxas. Leme: LED, 2002.

 

[1] ROSSI, Carlos Alberto Del Papa. Introdução ao estudo das taxas. Leme: LED, 2002. p. 89.

[2] Base de cálculo, alíquota e princípios constitucionais, 2ª ed. São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 89.

[3] Dicionário Aurélio – Século XXI, verbete “ratear”. Versão 3.0. Lexikon Informática Ltda.

[4] 1º TAC/SP – 7ª C., Apel. nº 1.261.676-1/São Paulo, Rel. Juiz Luiz Sabbato, Julg. 20.04.2004.

[5]