Análise de Documentos Imobiliários

 

Introdução

Que ninguém se iluda acreditando que no Brasil é possível a realização de um negócio imobiliário absolutamente seguro. Na realidade, mesmo com a verificação de que a documentação pertinente está em ordem, é possível que o adquirente tenha que enfrentar algum tipo de problema futuramente.

Desta forma, o que se deve procurar fazer quando de uma transação imobiliária é adotar todas as cautelas que possam, de alguma forma, minimizar ao mínimo possível os seus riscos.

Para a maioria das pessoas a aquisição de um imóvel é, além da realização de um sonho, a alocação de todas as economias de uma vida inteira em um único bem. Isto, por si só, demonstra que não se pode realizar esse tipo de negócio sem uma grande quantidade de cuidados.

Um negócio imobiliário não pode ser realizado apenas considerando que o vendedor é um amigo, uma pessoa de confiança ou algo parecido, pois isso leva as pessoas a acreditarem que a segurança é absoluta. Grande engano!

É enorme a quantidade e diversidade de detalhes que devem ser atentamente analisados antes de se comprar (ou alugar) um imóvel. Afinal, é o tipo de negociação que oferece riscos que vão desde pequenos aborrecimentos até a perda do imóvel adquirido, valendo lembrar que muitas vezes é impossível recuperar o capital empregado em sua aquisição.

 

A importância da análise jurídica da documentação - 'Due Diligence' Imobiliária

Além da óbvia necessidade de uma cuidadosa análise dos documentos relacionados ao negócio imobiliário que se pretende concretizar, a lista deles (documentos) é bastante vasta, e em 99% dos casos vai muito além daquela documentação básica que alguns corretores ou imobiliárias solicitam.

Em todas as áreas (corretagem imobiliária, medicina, direito, engenharia, etc) a esmagadora maiorias dos respectivos profissionais é séria, mas lamentavelmente há uma parte deles que não tem compromisso com a transparência, e atuam de forma leviana.

No caso de transações imobiliárias, isto faz com que em muitos casos duas coisas possam acontecer: 1) os corretores ou imobiliárias não solicitam todos os documentos necessários à mais ampla análise; ou, 2) que a documentação apresente apontamentos que são minimizados pelas suas opiniões.

Por tal motivo é indispensável que os adquirentes de imóveis sempre (sempre mesmo) contratem a análise do contrato e da respectiva documentação por advogados atuantes no Direito Imobiliário; e NUNCA deixem essa tarefa para qualquer pessoa que, direta ou indiretamente, tenha interesse na concretização da venda.

 

Breves anotações sobre a Lei 13.067/2015 (art. 54)

Com a finalidade de trazer maior segurança aos adquirentes de imóveis, a Lei 13.097/2015 trouxe seu artigo 54, em total sintonia com o que há muito tempo vinha sendo construído tanto pela doutrina como jurisprudência (Súmula 375 do STJ).

Em linhas gerais, segundo tal dispositivo, basicamente basta o interessado na compra do imóvel analisar se de sua matrícula há alguma constrição averbada para saber se a compra é ou não é segura.

Ou seja, ainda que hajam constrições que possam alcançar o imóvel, caso não constem da matrícula do imóvel, o credor (do vendedor) não poderia posteriormente se insurgir alegando a existência de fraude. Neste momento não entraremos no mérito das dívidas de natureza tributária (o que exigiria mais tempo e detalhes), mas já asseguramos que a situação é muito mais complexa do que parece.

Com o advento do "Novo Código de Processo Civil" (Lei nº 13.105/2015) ressurgiram inúmeros debates que antes da Lei nº 13.097/2015 já permeavam as polêmicas do Direito Imobiliário; e isto em razão do novo artigo 792, IV (CPC). 

Isto tanto é verdade que a 32ª C. Dir. Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferiu decisão adotando como base o mencionado artigo 792, IV, do Código de Processo Civil. Entendeu-se que para que a fraude se caracterize basta haver uma ação ajuizada na qual o réu/executado tenha sido validamente citado, e que a venda do seu imóvel seja capaz de levá-lo ao estado de insolvência.

Note-se que referida decisão não aplicou o artigo 54 da Lei 13.097/2015, pelo qual somente com a averbação da ação na matrícula do imóvel, ter-se-ia a caracterização da fraude.

Confira-se parte da decisão em comento:

"Para a caracterização da fraude à execução nestas hipóteses, mostra-se necessária a presença de dois requisitos fundamentais: a existência de ação em curso, com a citação válida do réu/executado e que a alienação ou oneração do bem conduza o devedor ao estado de insolvência."[1]

Ousamos discordar desse entendimento, que, com o devido respeito, nos parece ilegal.

Acreditamos que deva prevalecer o teor Súmula 375 - STJ, pela qual "o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente". É a "juridicização" da milenar parêmia: "a boa-fé se presume; a má-fé se prova".

Em nossa forma de pensar, decorrente de uma interpretação sistemática das normas, o artigo 54 da Lei nº 13.097/2015 não foi revogado pelo artigo 792, IV, da Lei 13.105/2015 (NCPC).

Não há nenhum conflito entre tais normas. Isto porque, o artigo 792, IV, tem sua aplicação restrita aos negócios que envolvam "bens não sujeitos a registro"; o que não é esse o caso de bens imóveis.

Com efeito, no caso de venda de imóvel, por se tratar de "bem sujeito a registro", incide o §2º, do artigo 792, do Código de Processo Civil[2]. Ou seja, somente no caso de aquisição de bens "não sujeitos a registro", o adquirente tem o ônus de comprovar que tomou todas as medidas necessárias à comprovação de sua boa-fé, como exige o artigo 792, IV, do CPC.

Nossa interpretação (sistemática) afasta qualquer tipo de conflito entre normas, e mantem-se em total sintonia com a Súmula 375-STJ, bem como atende a orientação decorrente do Recurso Especial Repetitivo 956.943/PR.

Cremos, s.m.j., que nossa linha de raciocínio não se mostra equivocada, haja vista que mesmo após a Lei 13.105/2015 (NCPC), o Superior Tribunal de Justiça não mudou seu entendimento, e manteve válida sua Súmula nº 375; que vem sendo reiteradamente aplicada, como se observa, por exemplo, dos AgInt. no AgInt. no REsp. nº 1.692.725/SP e AgInt. no AREsp. Nº 1.579.277/PR.

E não é só!
Além, dessa e muitas outras polêmicas, nos parece importante ressaltar que no caso de Débitos Tributários não se aplica o entendimento da referida Súmula 375-STJ. Isto por força do disposto no artigo 185 do Código Tributário Nacional (redação dada pela Lei Complementar nº 118/2005). 

Isto porque, a nova redação do artigo 185 do CTN passou a presumir de forma absoluta (jure et de jure) que basta o débito tributário estar devidamente inscrito como "dívida ativa", para que qualquer alienação seja considerada como fraudulenta. É o que, inclusive, se constata do que foi decidido pelo Superior Tribunal de Justiça, que em 2012 proferiu decisão aplicando o artigo 185 do CTN, desconsiderando a Súmula 375, que é de 2009. Confira-se:

 

"AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. TRIBUTÁRIO. FRAUDE À EXECUÇÃO FISCAL. ART. 185 DO CTN. NEGÓCIO JURÍDICO REALIZADO ANTES DA EDIÇÃO DA LC 118/2005. ALIENAÇÃO DE BEM APÓS À CITAÇÃO DO DEVEDOR. FRAUDE À EXECUÇÃO CARACTERIZADA. AVERIGUAÇÃO DO ESTADO DE INSOLVÊNCIA. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.
1. Antes da edição da LC 118/2005 que deu nova redação ao art. 185 do CTN, presumia-se a fraude à execução se a alienação sucedesse a citação válida do devedor; após a sua vigência, considera-se fraudulenta a alienação realizada após a inscrição do crédito tributário na dívida ativa.
2. Tendo o Tribunal de origem concluído que, com base nas provas dos autos, não há possibilidade de se averiguar o valor total das dívidas, nem o valor dos bens do executado, rever esse entendimento para aplicar o parágrafo único do art. 185 do CTN, encontra óbice na Súmula 7/STJ.
3. Agravo Regimental desprovido."
(STJ - 1ª T., AgRg no REsp 1.095.503/PR, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe 14.12.2012)

 

Com esta explanação procuramos evidenciar que diante de todas controvérsias que giram em torno deste assunto, nossa recomendação, e que reforçamos, é de que os adquirentes de imóveis jamais deixem de exigir dos respectivos proprietários alienantes, todos os documentos pertinentessem exceções, submetendo-a à análise técnica de um advogado que atue com Direito Imobiliário.

Tal como já dissemos, inúmeros problemas podem ocorrer numa venda e compra de imóveis, e podemos destacar que uma das questões que mais preocupa os adquirentes, é a caracterização de "Fraude à Execução" ou de "Fraude Contra Credores".

Por tal motivo, sempre aconselhamos que JAMAIS se adquira ou alugue um imóvel sem uma prévia assessoria competente - Due Diligence.

 

CARLOS ALBERTO DEL PAPA ROSSI

Advogado, consultor em negócios imobiliários, pós-graduado em Direito Tributário (PUC/SP), pós-graduado em Direito Processual Civil (PUC/SP), MBA com ênfase em Direito da Econômico-empresarial (FGV/SP), Extensão Universitária em Direito Imobiliário (FMU), autor do livro "Introdução ao Estudo das Taxas" e de inúmeros artigos publicados em periódicos especializados.

 

[1] TJ/SP - 32ª C.D.Priv., AI nº 2161835-07.2016.8.26.0000, Rel. Des. Ruy Coppola, Julg. 17.11.2016.

 

[2] Art. 792, §2º, CPC: "No caso de aquisição de bem não sujeito a registro, o terceiro adquirente tem o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem."