Enriquecimento sem causa

 

       Introdução

 

       Atualmente, com o advento do Código Civil de 2002, há regramento expresso sobre o enriquecimento sem causa (arts. 884/886).

       Isto não significa que anteriormente se admitia o injustificado acréscimo patrimonial. Deveras, o direito já repudiava tal situação, pois outras normas jurídicas, embora não tão expressamente como ocorre hoje, afastavam o enriquecimento sem causa.

       No presente artigo, ainda que de forma resumida, pretendemos fazer breves observações sobre o tema, tendo em vista a grande quantidade de situações que podem implicar um aumento patrimonial sem justa causa.

 

      

       1. No direito romano

 

 

O tema tem sua origem no Direito Romano. “Nemo potest lucupletari, jactura aliena“, ou seja, ninguém pode enriquecer sem causa. Uma das obrigações criadas ex quase contractu tinha por origem o recebimento de prestação indevida. Se alguém recebia algo que não lhe era devido, tinha a obrigação de restituir, sendo que ao credor, portanto, eram facultadas as condictiones. A ação para reaver o que era pago equivocadamente era a condictio indebiti. Assim, esta baseava-se no pagamento feito por uma pessoa a outra quando, na verdade, nada era devido. Desta maneira, quem pagava o que não devia sofria um empobrecimento em favor de outrem, ficando este obrigado a devolver.

Havia outras condictiones, valendo citar: a) condictio causa data causa non secuta – ação prevista para aquele que cumpria uma obrigação relacionada a uma fato ainda a ser concretizado no futuro, e que assim não ocorria. Assim, o que foi pago antecipadamente deveria ser restituído. A título de exemplo, o dote dado antecipadamente, quando o casamento não se realizava; b) condictio ob iniustam causam – ação para reaver pagamento feito por exigência ilícita, como por exemplo, restituição de valores pagos a título de juros exorbitantes.

No direito justinianeu[1] havia a condictio sine causa, que podia ser aplicada em todas as situações de enriquecimento sem causa que não se enquadrassem em qualquer das outras condictiones.

 

       2. Código Civil de 1.916

 

       Apesar de o atual Código Civil tratar do assunto de forma bastante expressa, o diploma revogado não era omisso. Relacionava-se o enriquecimento sem causa com o pagamento indevido. Vale a transcrição dos referidos dispositivos, pois se o leitor desejar, poderá fazer uma comparação com o regramento atual. São eles:

 

Art. 964 – Todo aquele que recebeu o que lhe não era devido fica obrigado a restituir. A mesma obrigação incumbe ao que recebe dívida condicional antes de cumprida a condição.

 

Art. 965 – Ao que voluntariamente pagou o indevido incumbe a prova de tê-lo feito por erro.

 

Art. 966 – Aos frutos, acessões, benfeitorias e deteriorações sobrevindas à coisa dada em pagamento indevido, aplica-se o disposto nos Arts. 510 a 519.

 

Art. 967 – Se, aquele, que indevidamente recebeu um imóvel, o tiver alienado, deve assistir o proprietário na retificação do registro, nos termos do Art. 860.

 

Art. 968 – Se, aquele, que indevidamente recebeu um imóvel, o tiver alienado em boa-fé, por título oneroso, responde somente pelo preço recebido; mas, se obrou de má-fé, além do valor do imóvel, responde por perdas e danos.

 

Parágrafo único – Se o imóvel se alheou por título gratuito, ou se, alheando-se por título oneroso, obrou de má-fé o terceiro adquirente, cabe ao que pagou por erro o direito de reivindicação.

 

Art. 969 – Fica isento de restituir pagamento indevido aquele que, recebendo-o por conta de dívida verdadeira, inutilizou o título, deixou prescrever a ação ou abriu mão das garantias que asseguravam seu direito; mas o que pagou dispõe de ação regressiva contra o verdadeiro devedor e seu fiador.

 

Art. 970 – Não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação natural.

 

Art. 971 – Não terá direito à repetição aquele que deu alguma coisa para obter fim ilícito, imoral, ou proibido por lei.”

 

        Era absoluto o reconhecimento do enriquecimento ilícito na vigência do Código Civil revogado, in verbis:

 

“CIVIL. REPETIÇÃO DE INDÉBITO. CHEQUE COMPENSADO ANTES DO PRAZO. DEVOLUÇÃO POSTERIOR. ERRO DO BANCO. NEGATIVA DE DEVOLUÇÃO DO GASTO. ENRIQUECIMENTO INDEVIDO DO CORRENTISTA. LOCUPLETAMENTO ILÍCITO. ARTS. 964 E 965 DO CÓDIGO CIVIL. RECURSO PROVIDO.

I  – Aquele que indevidamente recebe um pagamento, sem justa causa, tem o dever de restituir, não tolerando o ordenamento positivo o locupletamento indevido de alguém em detrimento de outrem.

II – O banco que creditou na conta-corrente do seu cliente o valor de cheque depositado antes do termo final para compensação pode perseguir a devolução daquela quantia se verificar que o título de credito estava viciado.”

(STJ – 4ª T., REsp nº 67.731/SC, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ 09312/1997)

 

“CORREÇÃO MONETÁRIA – TERMO INICIAL.

A correção monetária – nada importa a natureza do crédito – deve incidir a partir do momento em que o devedor incidiu em mora. De outro modo, o inadimplente será beneficiado por enriquecimento ilícito

(STJ – 1ª T., REsp nº 11.882/SP, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ 26.04.1993)

 

“RESP – CONSTITUCIONAL – PROCESSUAL CIVIL PRECATORIO – CORREÇÃO MONETARIA – A correção monetária e adequação do valor material da obrigação ao valor formal. Deve ser calculada a fim de impedir enriquecimento ilícito do devedor, notadamente nas dividas de caráter alimentar.”

(STJ – 6ª T., REsp nº 30.247/PR, Rel. Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, DJ 12.04.1993)

 

       Tendo destacado que o Código Civil anterior já regrava situações relacionadas com o enriquecimento sem causa, passamos a cuidar do tema conforme disciplinado pela legislação vigente.

 

        3. Código Civil de 2002

 

       Atualmente, o Código Civil, logo após tratar do pagamento indevido (arts. 876 a 883), disciplina o enriquecimento sem causa (arts. 884 a 886). Nota-se que o atual artigo 876, que trata do pagamento indevido, é de redação quase idêntica àquela do artigo 964 do diploma revogado, que era aplicada para o enriquecimento sem causa, que hoje é regrado expressamente, valendo a transcrição dos artigos 884 a 886:

 

Art. 884 – Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários

 

Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido..

 

Art. 885 – A restituição é devida, não só quando não tenha havido causa que justifique o enriquecimento, mas também se esta deixou de existir.

 

Art. 886 – Não caberá a restituição por enriquecimento, se a lei conferir ao lesado outros meios para se ressarcir do prejuízo sofrido.”

 

 

       Na vigência do diploma anterior, portanto, qualquer pagamento indevido autorizava a repetição por enriquecimento sem causa. Hoje isto não é mais possível. Se alguém recebe um pagamento que não lhe era devido precisará invocar o artigo 876 do CC, e não o específico artigo 884, pois há vedação expressa no artigo 886.

       Desta forma, pelo Código Civil de 2002 o enriquecimento sem causa passou a ter um caráter subsidiário, pois só poderá ser alegado para fundamentar o pedido de restituição se não houver outros meios. Isto não significa que aquele que recebe um pagamento que não lhe era devido não enriquece injustificadamente; trata-se apenas do regramento para pleitear a devolução. Cuidaremos deste assunto mais adiante.

 

       3.1. Conceito

 

       De fato, da leitura do artigo 884 do Código Civil notamos que a ninguém é dado o direito de enriquecer à custa de outrem, sem causa legítima. Não se proíbe o enriquecimento de um pelo empobrecimento de outro, mas sim esta situação sem uma causa justificadora. Certamente há casos em que uma pessoa empobrecerá em benefício de outra sem que se caracterize qualquer tipo de ilícito, como é o caso, por exemplo, da doação; o doador empobrecerá em favor do donatário, mas se tem presente uma causa justa.

       A partir do disposto no artigo 884 do Código Civil nos parece possível conceituar enriquecimento sem causa como forma de enriquecimento ilícito em que o solvens, espontânea e equivocadamente, realiza uma prestação em favor do accipiens, que não é seu credor, acarretando-lhe o dever legal de restituição.

       Muitas situações se enquadram perfeitamente no conceito de enriquecimento sem causa, como é o caso, por exemplo, do pagamento indevido (art. 876), da vantagem obtida de pessoa que se encontrava em estado de lesão (art. 157), onerosidade excessiva (art. 478). Em todos esses exemplos é possível imaginarmos uma pessoa tendo um acréscimo patrimonial em detrimento de outrem, sem que exista uma causa legitimadora.

       Não se pode admitir que alguém enriqueça à custa alheia sem um fundamento jurídico (nemo potest lucupletari, jactura aliena).

      

       3.2. Requisitos

 

       São requisitos do enriquecimento sem causa:

 a) enriquecimento de alguém (accipiens) – o patrimônio de uma pessoa deve ser aumentado, sendo que isto pode ocorrer por duas formas: a.1.) efetiva vantagem auferida, como por exemplo, o recebimento de um valor que não era devido; a.2.) ausência de um prejuízo ou diminuição de uma despesa, como por exemplo, conexão clandestina com a rede de fornecimento de energia elétrica.

b) empobrecimento de outrem (solvens) – em razão de o patrimônio do accipiens crescer, o de outra pessoa deverá, conseqüentemente, sofrer uma diminuição. A parcela que é acrescida no patrimônio de um sai, ou deixa de ingressar, no patrimônio de outro;

c) nexo causal – relação entre o aumento patrimonial do accipiens e a diminuição experimentada pelo solvens;

d) ausência de justa causa – o enriquecimento do accipiens deve ocorrer sem que exista uma causa justificadora (art. 885, CC). O solvens realiza uma prestação em favor do accipiens sem ter a obrigação; o faz equivocadamente. Não pode haver nenhuma causa que legitime o enriquecimento. Há que se distinguir o enriquecimento injusto daquele que ocorre sem que haja uma razão que o justifique. Se, por exemplo, alguém empresta dinheiro a outrem, que não o restitui no prazo avençado, prescrito o direito de ação para cobrança, haverá um enriquecimento do mutuário. Isto, que apesar de nos parecer injusto, não se deu sem uma causa legitimadora. A prova do pagamento indevido cabe a quem alega tê-lo feito (art. 877, CC). Para tornar mais claro o que se pretende expor, como outro exemplo podemos citar a vantagem patrimonial daquele que por usucapião adquire a propriedade de bem imóvel. Certamente há um enriquecimento de uma pessoa em desfavor de outra, mas não podemos falar em ausência de justa causa.

       Há quem inclua a subsidiariedade da ação in rem verso como requisito. Pensamos de forma diferente. Acreditamos que pelo simples fato de o locupletamento de uma pessoa (accipiens) estar relacionado ao empobrecimento de outra (solvens), sem que para tanto exista uma causa justificadora, está caracterizado o enriquecimento sem causa. A subsidiariedade da ação in rem verso apenas se refere ao meio para se buscar a recomposição patrimonial. A título de ilustração, imaginemos que uma pessoa se aproveitando do estado de perigo vivido por outra, enriqueceu. Certamente, tal acréscimo patrimonial foi, total ou parcialmente, injustificado. Embora o fundamento do seu pedido seja o estado de perigo (art. 156, CC), não podemos deixar de reconhecer que houve enriquecimento sem causa. É certo que não poderá fundamentar seu pedido nos artigo 884 e 885, mas isto não que dizer que o fato exemplificado não se amolde ao conceito de enriquecimento sem causa. Afinal, aquele que recebe uma prestação que não lhe é devida, e por se aproveitar da necessidade de alguém se salvar, enriquece sem que haja uma causa justificadora.

       Desta forma, presentes os requisitos se está diante de enriquecimento sem causa, devendo o solvens, para buscar a recomposição do seu patrimônio, analisar se não há previsão especifica para o tipo de enriquecimento ilícito em questão.

 

       3.3. Subsidiariedade da ação in rem verso

 

       A ação in rem verso destina-se à recomposição de um patrimônio injustificadamente lesado em favor de outro. Contudo, o alcance desta definição é delineado pelo que determina o artigo 886 do Código Civil, in verbis:

 

                                “Art. 886. Não caberá a restituição por enriquecimento, se a lei conferir ao lesado outros meios para se ressarcir do                                         prejuízo sofrido.”  

 

       Desta maneira, a ação in rem verso só terá cabimento na hipótese de não haver previsão para o caso específico.

       A título de ilustração, se uma pessoa acreditando ser devedora de outra fizer, de forma indevida, um pagamento, não poderá ajuizar a ação in rem verso para buscar a recomposição patrimonial, visto que para tal caso deverá adotar o disposto nos artigos 876/883. Assim, a ação in rem verso tem caráter subsidiário. Outros exemplos em que não se pode adotar a ação in rem verso: lesão (art. 157, CC), indenização devida ao possuidor de má-fé por benfeitorias necessárias (art. 1220, CC), direito do vizinho que constrói muro limítrofe (art. 1.297, CC), evicção (art. 447, CC). Nestes casos, embora o patrimônio de uma pessoa seja acrescido em razão da diminuição experimentada por outra, não se pode utilizar da ação in rem verso, pois há fundamento e meio próprio legalmente previsto.

 

Conclusões

 

O enriquecimento sem causa é a forma de acréscimo patrimonial decorrente do fato de o solvens, espontânea e equivocadamente, realizar uma prestação em favor do accipiens, que não é seu credor, acarretando a este o dever de restituição.

Para que se configure o enriquecimento devem estar presentes os seguintes requisitos: enriquecimento de alguém (accipiens), empobrecimento de outrem (solvens), nexo causal e ausência de justa causa.

       A ação in rem verso só é cabível para o caso de não haver disciplinamento específico (caráter subsidiário).

 

CARLOS ALBERTO DEL PAPA ROSSI

Advogado, Especialista em Direito Tributário (PUC/SP), Especialista em Direito Processual Civil (PUC/SP), MBA com ênfase em Direito Empresarial (FGV/SP), Extensão Universitária em Direito Imobiliário (FMU), autor do livro “Introdução ao Estudo das Taxas” e de artigos publicados em revistas especializadas e eletronicamente.

 

Bibliografia

CORREIA, Alexandre; SCIASCIA, Gaetano. Direito romano. V. 1. 2. ed. São Paulo: Edição Saraiva, 1953.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 3º vol. 20ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004.

MARKY, Thomas. Curso elementar de direito romano. São Paulo: Saraiva, 1995.

SCIASCIA, Gaetano; CORREIA, Alexandre. Direito romano. 1º vol. 2. ed. São Paulo: Edição Saraiva, 1953.

 

 

 

 


1. No que se refere à evolução interna do direito romano, parece adequada sua divisão nas seguintes fases: a) Período do direito quiritário (ius quiritum, ius civile), desde a fundação de Roma até a Lei das XII Tábuas; b) Período do ius gentium, que se subdivide em b.1.) após as guerras púnicas – impera o jus gentium, ou seja, o direito comum a todos povos do Mediterrâneo; e, b.2.) nos últimos anos da República começa o período clássico do direito romano, c) Período pós-clássico que tem seu início com Diocleciano e seu fim com o direito justinianeu. É nesta fase que se dá a formação definitiva do direito romano, que foi codificado pelo imperador Justiniano no século VI.