ISS - Mera sugestão da lista de serviços

 

Introdução

 

Sempre que se coloca em pauta um debate pertinente à taxatividade da lista de serviços tributáveis através do imposto municipal, é inevitável o surgimento de posicionamentos antagônicos e de acaloradas discussões.

Predomina, na jurisprudência, o entendimento de que a lista de serviços tributáveis pelos Municípios (ISS) é taxativa.

Com a devida vênia, ousando manifestarmo-nos em sentido divergente, no presente artigo, sem a pretensão de verdade, exporemos, com singeleza e modéstia, as razões que nos levam a pensar que enxergar a lista de serviços como taxativa é desconsiderar normas constitucionais de competência tributária, o que ocorre sempre que se afasta da interpretação sistêmica.

1. O Sistema Positivado

O sistema do direito positivo pode ser definido como o conjunto de normas jurídicas válidas, cujo fim colimado é regrar as relações que se operam entre os homens, bem como os atos destes enquanto legisladores. Como sistema[1] que é, seus elementos – as normas jurídicas – devem estar relacionados por um princípio unificador, que no caso é a chamada norma fundamental ou pressuposta. É pressuposta por preceder a Constituição Federal, já que esta é fruto das atividades constituintes do Poder Originário por aquela habilitado, sendo, portanto, seu fundamento de validade.

Da mesma forma que a norma fundamental habilitou o Poder Constituinte Originário para a elaboração da Lex Suprema, esta habilitou outros órgãos para a materialização do processo legislativo necessário à criação, alteração ou extinção de normas, inclusive de nível constitucional, sendo que para tanto, limites também foram travejados.

A conclusão à que se chega destas breves palavras é a de que todas as normas jurídicas válidas buscam tal característica na Constituição Federal, que por sua vez o faz na norma pressuposta, a norma fundamental.

Com isto em mente podemos passar à análise da possibilidade de se listarem os serviços tributáveis pelos Municípios via ISS, o que muitas vezes pode restringir ou ampliar a respectiva competência tributária, desconsiderando o conceito de serviço.

 

2. A competência tributária para a instituição do ISS e a lista de serviços

 

A Constituição Federal, classificando os Municípios como entes autônomos regidos por legislação orgânica própria (art. 29), estabeleceu, em seu artigo 30, inciso III, que tais entes políticos são competentes para instituir e arrecadar os tributos que lhe foram outorgados.

Possuindo poder legislativo próprio, os Municípios não podem ser vistos como pessoas políticas meramente administrativas; além da capacidade política são titulares de competência tributária, o que ressalta sua autonomia como entes político-constitucionais. Vale, sobre o tema, lembrar a lição de Celso Antonio Bandeira de Melo quando escreveu:

 

“É pelo exame do texto constitucional que se percebe, sem hesitação ou dúvida possível, o caráter eminente do Município, como elemento orgânico estrutural do sistema político brasileiro. Uma entidade intra-estatal, de caráter autônomo (art. 16 da C.C.), isto é, dotada de competências privativas, outorgadas pela Lei Magna, no tocante à condução do assuntos de seu peculiar interesse, por conseguinte, com poderes legislativos sobre matérias de relevância local, dispondo de poder tributário igualmente privativo no tocante aos impostos que lhe forem reservados pela Carta Constitucional (art. 16, nº II, letra ‘a’ da C.C.) e privativo, ainda, no que tange às taxas ou rendas relativas a serviços seus, bem como à contribuição de melhoria cobrada em razão de obra municipal (art. 19, ns. II e III da C.C.), não pode ser considerada pessoa meramente administrativa”.[2]

 

Tendo conferido autonomia e competência tributária aos municípios, ao habilitá-los para a instituição do Imposto Sobre Serviços a Constituição Federal, em seu artigo 156, inc. III, estabeleceu que, verbis:

“Art. 156. Compete aos Municípios instituir imposto sobre: … III – serviços de qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei complementar.”

 

Trata-se de norma constitucional de competência tributária, já que responsável pela autorização dos legislativos municipais para a inovação dos respectivos ordenamentos com normas que regrem a tributação (instituição, fiscalização e arrecadação) pelo referido imposto.

A competência tributária para a edição de normas referentes ao Imposto Sobre Serviços é, portanto, exclusiva dos Municípios devendo-se, ainda, respeitar os respectivos limites territoriais. Não pode, por tal razão, outro ente político-constitucional, que não os Municípios, fazendo as vezes destes, expedir normas para tributação via ISS.

Pensamos que a causa dos conflitos de entendimentos quanto à possibilidade de uma lei complementar listar taxativamente os serviços tributáveis via ISS decorre da parte final do inciso III do supra-transcrito artigo 156, vez que de sua redação consta a expressão definidos em lei complementar.

 

3. Lei complementar e listagem de serviços

 

Acreditamos que a adequada resposta à indagação “a que tipo de lei complementar se refere o artigo 156, III?” só pode ser alcançada a partir da interpretação sistemática das regras de competência tributária municipal, nunca da mera literalidade do artigo 156, III da Lei Magna, como ocorre na maioria das vezes.

Em primeiro lugar, pensamos que o intérprete deve verificar as matérias passíveis de regramento via legislação complementar.

A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios gozam de autonomia constitucionalmente discriminada e estão habilitados para legislarem concorrentemente sobre várias matérias, sendo que dentre elas está a tributação (CF/88, art. 24).

No campo da tributação a União, tal como limita o artigo 24, § 1° da Lei Maior, só pode estabelecer normas gerais, estas entendidas como aquelas que irradiam efeitos sobre todas as pessoas políticas, inclusive ela própria – União:

 

“Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar, concorrentemente, sobre: I – direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico; … § 1° No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais”.

 

Nos termos do que dispõe o artigo 146, da Constituição Federal:

 

“Art. 146. Cabe à lei complementar: I – dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; II – regular as limitações constitucionais ao poder de tributar; III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes; b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários; c) adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas.”

 

Os artigos 29 e 30 da Lei Magna, como já ressaltamos, estabelecem a autonomia municipal, inclusive para legislar no campo da tributação em seu território. Todos os entes político-constitucionais estão habilitados para legislar concorrentemente sobre direito tributário, cada um dentro de sua esfera de competência. Para que não se chegue à equivocada conclusão de que a Lei Maior possui disposições que se contradizem devemos, tal como assevera Roque Antonio Carrazza, interpretá-la de maneira sistemática impedindo o surgimento de choques normativos:[3]

 

“Ab initio, insistimos que a Constituição deve ser interpretada com vistas largas, justamente para que desapareçam as aparentes contradições de seus dispositivos, quando considerados em estado de isolamento. Exige-se, assim, a concordância de cada um de seus artigos com os princípios informadores, com as normas estruturais, de nosso ordenamento jurídico. Outra, inclusive, não é a lição de Carlos Maximiliano: ‘O todo deve ser examinado com o intuito de obter o verdadeiro sentido de cada uma das partes. ‘A Constituição não destrói a si própria. Em outros termos, o poder que ela confere com a mão direito, não retira, em seguida, com a esquerda.’ Conclui-se deste postulado não poder a garantia individual, a competência, a faculdade ou a proibição encerrada num dispositivo ser anulada praticamente por outro; não procede a exegese incompatível com o espírito do estatuto, nem com a índole do regime’. Ora, só com estas colocações já podemos dizer que o art. 146 da Lei Maior deve ser entendido em perfeita harmonia com os dispositivos constitucionais que conferem competências tributárias privativas à União, Estados, aos Municípios e ao Distrito Federal, pois a autonomia jurídica destas pessoas políticas envolve princípios constitucionais incontornáveis.”[4]

 

Assim, analisando o artigo 146 conjuntamente com o artigo 24, I e § 1º, todos da Carta Magna, somos forçados à conclusão de que por lei complementar, a União só pode veicular normas gerais, ou seja, respeitando a competência privativa dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

Destarte, sendo o ISS um tributo de competência privativa dos Municípios, ou seja, não se tratando de matéria regrada por normas gerais não há como ser disciplinado por lei complementar – salvo se, eventualmente, para dirimir conflitos.

Em suma, se nos ativermos à singela leitura isolada do artigo 156, III da Constituição Federal poderemos pensar que aos Municípios foi deferida competência para, tão somente, tributar as prestações dos serviços que estiverem definidos em legislação complementar, o que, por via reflexa, induz a equivocada conclusão de que a listagem é taxativa. É exatamente esta visão isolada que leva alguns doutrinadores à afirmação de que a taxatividade da lista de serviços é decorrência da clareza que flui da parte final do artigo 156, III.

Nessa linha de pensamento Marilene Talarico Martins Rodrigues escreveu que, verbis:

 

“Na definição do Fato Gerador do ISS, o legislador maior se preocupou em disciplinar o conceito de serviços, cuja prestação dá nascimento à obrigação tributária. Por esta razão a Lista de Serviços é considerada taxativa ou exaustiva, sendo vedado aos Municípios ampliar as atividades indicadas pela lei hierarquicamente superior à lei ordinária municipal. Sobre ser taxativa a lista de serviços, hoje a matéria já está pacificada pela jurisprudência dos tribunais e da nossa mais alta Corte de Justiça, embora se apresente menos uniforme pelos doutrinadores. Assim, os serviços tributados pelo ISS são somente os constantes da lista de serviços, que contém o rol integral daqueles serviços alcançados pelo ISS, na forma do disposto pelo art. 8º do Dec.-Lei 406/68: ‘O ISS tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa’. Em nosso atual ordenamento jurídico constitucional tributário, se o serviço não vier previsto em lei complementar, não poderá ele servir de hipótese de incidência do ISS, por impedimento constitucional”.[5]

 

Comungando dessa posição, Antonio Carlos Nogueira Reis manifesta seu entendimento:

 

“21. No meu entendimento a lista de serviços é taxativa. Só que me aproximo da posição sustentada por Aliomar Baleeiro, antes referida – que inspirou a jurisprudência hoje prevalecente nos tribunais –, com a diferença de que admito, como ele, uma interpretação extensiva da lista, mas apenas nos casos em que a própria lista expressamente o permite, ao utilizar a expressão ‘e congêneres’. Essa ressalva encontramos nos itens 1, 2, 3, 9, 11, 12, 16, 20, 25, 41, 60, 66, 72 e 78 da lista anexa à LC 56/87, dando a entender que somente estes, e não os demais itens da lista, comportariam interpretação extensiva. Caso contrário as ressalvas seriam ociosas e não se pode presumir na lei expressões que não tenham algum sentido”.[6]

 

Sobre o tema, entende o Eg. Superior Tribunal de Justiça pela taxatividade da lista de serviços, verbis:

 

“TRIBUTÁRIO – ISS: DL N. 406/68 – SERVIÇO DE TRANSFERÊNCIA DE TECNOLOGIA.1. A jurisprudência do STF, e desta Corte, desenvolveu-se no sentido de entender ser taxativa a lista de serviços do DL n. 406/68.2. Inadmissibilidade de interpretação extensiva ou analógica.3. Recurso especial não conhecido.”[7]

 

Outra conclusão é obtida de uma visão do sistema positivado como um todo, interpretação esta mais técnica e apropriada. Se o artigo 156, III for estudado conjuntamente com outras normas do mesmo Diploma, tal como dissemos há pouco, constatar-se-á a impossibilidade de se acolher o pensamento de que a União tem legitimação para, em lei complementar, listar exaustivamente os únicos serviços passíveis de tributação pelo imposto municipal.

Com efeito, ser competente para instituir e arrecadar tributos (CF, art. 30, III) é estar constitucionalmente habilitado pelo sistema para legislar editando diplomas a partir dos quais possam ser construídas normas que tratem da instituição, fiscalização e arrecadação de tributos. A competência tributária outorgada aos Municípios para que legislem instituindo o Imposto Sobre Serviços é privativa; exclui a das demais pessoas. Pode-se dizer que ao mesmo tempo em que a Constituição Federal delineia a competência tributária de um determinado ente político-constitucional, traça a incompetência dos demais.

Ensinando sobre a competência tributária Geraldo Ataliba escreveu que, verbis:

 

“quem diz privativa, diz exclusiva, quer dizer: excludente de todas as demais pessoas; que priva do seu uso todas as demais pessoas. A exclusividade da competência de uma pessoa implica proibição peremptória, erga omnes, para exploração desse campo”.[8]

 

Seguindo com nosso raciocínio, dada a privatividade da competência dos Municípios – entes político-constitucionais autônomos – para a instituição do Imposto Sobre Serviços – ISS, procedendo-se a uma interpretação sistemática somos forçados a concluir que a lei complementar à qual se refere a parte final do inciso III do artigo 156 é aquela que tem por objetivo, no caso de surgimento de um conflito de competência, dirimi-lo, como no caso, p. ex., de a União, através do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI, tributar uma atividade que não seja pertinente à industrialização, mas sim a uma prestação de serviços.

 

Conclusão diversa, com a devida vênia, nos parece acolher a possibilidade de a Carta Suprema ser composta de normas que se contradizem. Isto porque, sendo os municípios entes políticos autônomos titulares de competência para legislar criando abstratamente o Imposto Sobre Serviços, não vemos a possibilidade de se limitar essa competência através de legislação complementar, pois estar-se-á deferindo ao respectivo legislador poder para até mesmo, por hipótese, reduzir tal competência tributária a nada, para o que bastará retirar todos os serviços da listagem.

Deveras, a eficácia do artigo 156, III da Constituição Federal não está condicionada à edição de legislação complementar. Basta mera leitura da disposição para se verificar que a materialidade possível do tributo é prestar + serviços, sendo que a única limitação para o exercício da respectiva competência refere-se aos serviços de comunicação e de transporte interestadual e intermunicipal, tributáveis pelos Estados via ICMS. Como já escrevemos “a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 156, inciso III, outorgou aos Municípios competência para a instituição do Imposto Sobre Serviços de qualquer natureza – ISS. Dessa disposição constitucional notamos que todas as prestações de serviços que não se caracterizem como de comunicação ou transporte interestadual e intermunicipal podem ser tributadas pelos Municípios através do Imposto Sobre Serviços – ISS”.[9] Noutra oportunidade dissemos que “a Constituição Federal, em seu artigo 156, III, deixou clara a competência privativa dos Municípios para tributarem os serviços de qualquer natureza. Serviço é serviço; é uma obrigação de fazer que tem por objeto uma utilidade material ou imaterial. Embora, por infelicidade, o mesmo artigo 156, III, tenha mencionado serviços ‘definidos em lei complementar’, esta não pode qualificar como serviço aquilo que serviço não é, assim como não pode impedir que os Municípios tributem serviços não definidos”.[10]

Na lição de Aires F. Barreto “serviço é esforço de pessoas desenvolvido em favor de outrem, com conteúdo econômico, sob regime de direito privado, em caráter negocial, tendente a produzir uma utilidade material ou imaterial”.[11] Com efeito, tendo esta definição em mente, e ciência dos serviços tributados pelo ICMS, todos os demais são passíveis de descrição como materialidade do imposto municipal.

Não nos parece apropriado o entendimento de que o artigo 156, III da Lei Maior habilitou os municípios para tributarem prestações de serviços, e que só podem ser tributados os que forem arrolados por lei complementar. Tal entendimento não só é contrário à autonomia dos Municípios, como viola o princípio da igualdade tributária.

Em seu artigo 150, II, a Constituição Federal vedou a adoção de tratamento desigual entre aqueles que numa mesma situação sem encontrem, verbis:

 

“Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: … II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão da ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;”

 

Proibir que os municípios tributem prestações de serviços pela simples razão de não estarem arrolados em legislação complementar é o mesmo que tratar prestadores de serviços com desigualdade, pois os que têm como objeto serviços não listados, apesar de estarem em nível de igualdade quanto aos demais – todos prestadores de serviços (que não deixam de ser serviços por mera ausência de citação em lista) –, não poderão ser colocados no pólo passivo de relação obrigacional tributária referente ao ISS.

Apenas para ilustrar a idéia que ora se transmite, temos que o item 49 da lista anexa ao Decreto-lei n° 406/68 arrolava como serviço tributável via ISS o de “agenciamento, organização, promoção e execução de programas de turismo, passeios, excursões, guias de turismo e congêneres”. Nessa mesma listagem não se encontrava o serviço de agenciamento marítimo,[12] que passou a integrar a lista constante da Lei Complementar nº 116/03 (item 10.06). Ou seja, embora ambos os serviços fossem de agenciamento, em que o prestador trabalha como intermediário, no caso do agenciamento marítimo, tal como decidiu[13] o Superior Tribunal de Justiça, não podia haver a tributação por não se tratar de serviço listado no Decreto-lei n° 406/68. Nos parece, com a devida vênia, que dentre outras violações ao Texto Magno tal entendimento afronta o princípio da igualdade. Com a devida vênia, agenciamento marítimo não passou a ser serviço apenas em razão de sua inserção na listagem da Lei Complementar nº 116/03.

Ainda no que se refere à análise da lista anexa ao Decreto-lei n° 406/68, para citar mais um exemplo, notamos que não estava arrolado o serviço de vidraçaria, o que, segundo o entendimento daqueles que defendem a taxatividade da lista, impedia que os Municípios procedessem à respectiva tributação. Ora, serviço de vidraçaria não era serviço? Estamos convictos que sim, razão pela qual podia, como pode, ser objeto de tributação municipal.

Ressaltemos, então, os pontos principais: a) todo esforço realizado para por alguém em favor de outrem tendo como objeto uma utilidade material ou imaterial é serviço; b) os Municípios são pessoas políticas autônomas, dotadas de poder legislativo próprio e habilitados para a instituição e arrecadação de tributos (CF/88, arts. 29 e 30, III); c) os Municípios são titulares da competência tributária para instituir o ISS; d) a competência tributária de um ente político-constitucional derroga a dos demais; e) a Constituição Federal veda o tratamento desigual para aqueles que se encontram em condições de igualdade (CF/88, art. 150, II); f) em matéria tributária, a lei complementar só pode versar sobre normas gerais (CF/88, art. 24, § 1°), sendo o ISS matéria específica de competência exclusiva dos Municípios.

Todas essas questões, se visualizadas sistematicamente, forçam a conclusão de que os Municípios, independentemente de listagem em legislação complementar, estão autorizados a tributar todo e qualquer serviço que não seja de comunicação ou de transporte interestadual ou intermunicipal.

Vale ressaltar que, por conseguinte, os Municípios não podem tributar, via ISS, atividades que embora listadas não se caracterizem como obrigações de fazer, tal como é o caso, por exemplo, de locação de bens móveis, já que se trata de uma obrigação de dar e não de fazer.

Nem a lista, nem a própria legislação complementar tem autoridade para restringir ou ampliar a competência tributária dos Municípios para a instituição do ISS.

Na mesma linha de entendimento Roque Antonio Carrazza ensina, verbis:

 

“Relembramos que o Município é pessoa política, dotada de ampla autonomia. Ora, se o Município é autônomo e se sua autonomia é assegurada principalmente com a decretação e arrecadação dos tributos de sua competência (art. 30, III, CF), já vemos que o campo do ISS não pode ter suas dimensões aumentadas, diminuídas ou, muito menos, anuladas por uma lei complementar. Senão, estaremos implicitamente aceitando que é o Congresso Nacional, por meio de lei complementar, que confere aos Municípios competências para que tributem os serviços de qualquer natureza”.[14]

Outra não é a posição de Geraldo Ataliba e Aires F. Barreto que, tratando da tributação das atividades de locação e leasing, asseveraram, verbis:

 

“26. O magistério de Baleeiro é lapidar: ‘Do mesmo modo, a Lei Complementar não pode ir além do que já está dito, expressa ou implicitamente, na Constituição. Esta será violada por Lei Complementar que regule diversamente do que ela regulou. É o caso de inconstitucionalidade da Lei Complementar. Complementa, mas não corrige, nem inova’ (Direito Tributário Brasileiro, 11ª ed., p. 60).

Em conseqüência, ao ‘definir’ os serviços tributáveis, a lei complementar não pode transformar em serviço o que serviço não é. Não pode alterar o Texto Magno, retirando competência de uma entidade político-constitucional, para dar a outra. Souto Maior Borges, a propósito, escreve frases lapidares: ‘Tanto que, se for definido por lei complementar, para efeito de tributação municipal, serviço compreendido na competência tributária da União – o que é improvável mas teoricamente possível – ou dos estados, nem por isso poderão os Município tributá-los. Ambas as leis seriam, em tal hipótese, inconstitucionais. Se a União abre mão da competência federal, viola a regra segundo a qual o não exercício da competência tributária não a defere a pessoa diversa do seu titular. (Código Tributário Nacional, art. 8º): se invade o campo estadual, usurpa competência tributária alheia.’ (Lei Complementar Tributária, p. 196).

… 29. A lei tributária não pode ampliar o conceito de serviço constitucionalmente pressuposto. É inconstitucional a lei tributária que pretenda dispor que ‘se considera serviço’ algo que a esse conceito não corresponda. É que essa ampliação teria por efeito alargar a competência tributária do município, o que é matéria constitucional e, pois, imodificável por lei. As competências constitucionalmente fixadas são inderrogáveis. Nem a lei complementar – ainda que a pretexto de dispor sobre conflitos – poderio fazê-lo”.[15]

 

A lista anexa ao Decreto-lei nº 406/68, em seu rol originário, contava com apenas vinte e nove incisos, o que foi ampliado com a edição do Decreto-lei nº 834/69, passando a ter sessenta e seis itens. Ora, acreditamos que os serviços incluídos – ampliando a lista originária – não assumiram a condição de serviços somente pelo fato de serem integrados à lista. Já possuíam tal atributo. A título de exemplo, os serviços de paisagismo e decoração passaram a integrar a lista apenas com o Decreto 834/69, o que não significa que antes disso não se tratava de serviços e que não podiam ser tributados via ISS. Da mesma forma, vários outros serviços posteriormente acrescidos à listagem já eram serviços antes das respectivas inserções. Desta maneira, todos os serviços até hoje não inclusos na lista (atualmente constante da Lei Complementar nº 116/03), são serviços e passíveis de tributação via ISS.

 

Conclusões

 

Os Municípios são entes aos quais a Constituição Federal conferiu plena autonomia (CF/88, arts. 29 e 30).

Direito tributário é matéria sobre a qual a União, os Estados e os Municípios legislam concorrentemente (CF/88, art. 24, I), o que limita a União à expedição de normas gerais, (CF/88, art. 24, § 1°). Legislar sobre ISS é legislar sobre matéria de competência privativa dos Municípios, o que afasta a possibilidade de se visualizar tal assunto como normas gerais.

No campo do Imposto Sobre Serviços – ISS a legislação complementar a que se refere o artigo 156, III é a necessária para, eventualmente, dispor sobre conflitos de competência.

A hipótese tributária possível de ser descrita pelas leis municipais instituidoras do Imposto Sobre Serviços – ISS é prestar + serviços que não sejam de comunicação ou de transporte interestadual ou intermunicipal. Assim, todo e qualquer serviço que não se caracterize como tal pode ser tributado pelo imposto municipal.

Toda e qualquer lista que tenha a pretensão de arrolar serviços tributáveis pelo ISS é meramente sugestiva, pois do contrário estar-se-á tratando diferentemente pessoas que se caracterizam como prestadores de serviços, pois não é a lista que atribui ao “fazer” a condição de serviço.

 

CARLOS ALBERTO DEL PAPA ROSSI

Advogado, Especialista em Direito Tributário (PUC/SP), Especialista em Direito Processual Civil (PUC/SP), MBA com ênfase em Direito Empresarial (FGV/SP), Extensão Universitária em Direito Imobiliário (FMU), autor do livro “Introdução ao Estudo das Taxas” e de artigos publicados em revistas especializadas e eletronicamente.

 

BIBLIOGRAFIA

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ATALIBA, Geraldo; BARRETO, Aires F. ISS – locação e “leasing”. Revista de Direito Tributário nº 51. São Paulo: RT, 1990. p. 56.

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CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 11ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 542.

CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 84.

MELO, Celso Antonio Bandeira de. Natureza e regime jurídico das autarquias. São Paulo: RT, 1968. p. 34.

REIS, Antonio Carlos Nogueira. Peculiaridades do iss, in Revista Tributária nº 47. São Paulo: RT, 2002. p. 83

RODRIGUES, Marilene Talarico Martins. Imposto sobre serviços de qualquer natureza – iss, in Tributos municipais – iss, iptu e contribuição de melhoria. Rio de Janeiro: Forense, 1988. p.37.

ROSSI, Carlos Alberto Del Papa. ISS – base de cálculo, in Revista Tributária n° 47. São Paulo: RT, 2002. p. 107.

ROSSI, Carlos Alberto Del Papa. Serviços de propaganda visual (“comunicação visual”) – tributação, in Revista Dialética de Direito Tributário n° 72. São Paulo: Dialética, 2001. p. 09.

NOTAS

1. “O sistema aparece como o objeto formado de porções que se vinculam debaixo de um princípio unitário ou como a composição de partes orientadas por um vetor comum. Onde houver um conjunto de elementos relacionados entre si e aglutinados perante uma referência determinada, teremos a noção fundamental de sistema”. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 84.

2. Natureza e regime jurídico das autarquias. São Paulo: RT, 1968. p. 34.

3. Acreditamos que a idéia de que a Constituição Federal deva ser analisada com vistas largas para que não surjam falsas contradições é válida para a época em que o Prof. Roque Carrazza redigiu o trabalho citado, pois hoje não há como se negar a existência de disposições frontalmente contraditórias. Isto porque o Poder Constituinte Derivado é, na sua grande maioria, formado por pessoas altamente despreparadas sem nenhum conhecimento jurídico e preocupadas apenas com interesses pessoais, o que lhes faz com que cometam verdadeiras atrocidades com o Texto Supremo. É o caso, por exemplo, do artigo 149–A, inserido pela EC nº 39/2002. Trata-se de um dispositivo que teve a única finalidade de tentar permitir que os Municípios contornem limites que o Poder Constituinte Originário estabeleceu para o exercício da competência tributária quando da instituição de taxas de serviços públicos. Tal artigo 149-A é fruto de tamanha ignorância dos legisladores que não ha como interpretá-lo de maneira a fazer com que desapareça a violação aos chamados “limites constitucionais ao poder de tributar”.

4. Curso de direito constitucional tributário. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 510.

5. Imposto sobre serviços de qualquer natureza – iss, in Tributos municipais – iss, iptu e contribuição de melhoria. Rio de Janeiro: Forense, 1988. p.37. Embora o citado artigo tenha sido escrito na vigência da anterior Constituição Federal, seu artigo 24, II, que habilitou os municípios para a instituição do ISS também falava em serviços definidos em lei complementar.

6. Peculiaridades do iss, in Revista Tributária nº 47. São Paulo: RT, 2002. p.83

7. STJ – 2ª T., REsp nº 35.164/RJ, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ 08.03.2000, p. 94; LEXSTJ 130/154.

8. Sistema constitucional tributário brasileiro. São Paulo: RT, 1966. p. 106.

9. ROSSI, Carlos Alberto Del Papa. ISS – base de cálculo, in Revista Tributária n° 47. São Paulo: RT, 2002. p. 107.

10. ROSSI, Carlos Alberto Del Papa. Serviços de propaganda visual (“comunicação visual”) – tributação, in Revista Dialética de Direito Tributário n° 72. São Paulo: Dialética, 2001. p. 09.

11. Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza. Revista de Direito Tributário nº 29/30, São Paulo: RT, 1984. p.188.

12. Intermediação feita pelo agente do armador no sentido de prover as necessidades dos agenciados para que possam proceder as operações de carga das mercadorias que transportam.

13. STJ – 2ªT., REsp n° 271.676/RS, Rel. Min. Francisco Peçanha Martins.

14. Curso de direito constitucional tributário. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 1998. p. 542.

15. ISS – locação e “leasing”. Revista de Direito Tributário nº 51. São Paulo: RT, 1990. p. 56.