O Princípio da Vedação ao Confisco e a Multa no campo da tributação (*)

 

 

         Introdução

 

         É indiscutível que a carga tributária brasileira é extremamente elevada, fazendo com que muitos contribuintes prefiram descumprir algumas obrigações sujeitando-se ao risco de uma autuação, pois acreditam haver chances de isso não acontecer, como de fato há. Essa tentação é ainda maior nos casos em que as respectivas multas são brandas.

Entretanto, se numa ação fiscal a infração é identificada, sanções devem ser aplicadas, sendo que em muitas situações os valores dessas penalidades são bastante altos.

         Quando a penalidade é leve, além de não desmotivar o contribuinte de praticar os ilícitos tributários, a própria atividade empresarial dele empregando o valor do tributo sonegado é suficiente para no futuro pagar eventual multa e ainda assim lucrar.

         Uma vez autuado, o contribuinte infrator costuma sustentar em sua defesa que a multa, por ser elevada, não pode subsistir, vez que entende haver afronta ao princípio tributário que proíbe o confisco.

Estas brevíssimas considerações evidenciam que a aplicabilidade do princípio do não-confisco às multas é um tema bastante interessante na seara do direito tributário.

         Assim, com o objetivo de apresentarmos nossa posição sobre o tema, e sem a intenção de esgotar o assunto, iniciaremos com uma breve análise sobre as normas jurídicas distinguindo as impositivas das sancionatórias, para, em seguida, estudarmos o conceito de confisco e a aplicabilidade do princípio às multas.

 

1. Breves considerações sobre as normas jurídicas


         O homem tem sua liberdade circunscrita. Para delimitá-la o Poder Constituinte Originário, investido da autoridade que lhe foi outorgada pela norma fundamental, impôs o uso das leis[1] e disciplinou o emprego da força pelo Estado.[2]

Para a regulação de condutas uma norma jurídica veicula a descrição de um fato – hipótese – e a respectiva consequência de sua concretização. Portanto, se a situação descrita hipoteticamente vier a ser materializada por alguém, tornando-se um fato jurídico, nascerá a relação jurídica prescrita como consequência. É por meio das normas jurídicas que as condutas humanas são permitidas, vedadas ou tornam-se obrigatórias.

         No campo da tributação há a chamada norma jurídica de incidência tributária, que tem em sua composição os seguintes critérios:[3]

         a) hipótese:

         - critério material – descreve a conduta passível de ser materializada pelos destinatários da norma jurídica. Normalmente é encontrado na forma de um verbo acrescido de um complemento. Ex.: prestar + serviços de qualquer natureza.

         - critério espacial – especifica o local em que deve ser concretizada a conduta descrita no aspecto material

         - critério temporal – estabelece o momento em que se considera ocorrido o fato jurídico tributário, que dá ensejo à relação obrigacional tributária.

         b) consequência:

         - critério pessoal – formado pelos sujeitos ativo e passivo. O primeiro é o titular do direito de exigir o tributo do segundo que tem o dever correlato de recolhê-lo.

         - critério quantitativo – composto de base de cálculo e alíquota; com a aplicação desta sobre aquela alcança-se o valor da prestação.

         Estes elementos são, portanto, os que compõem a norma jurídica de incidência tributária, também chamada de regra-matriz de incidência tributária ou, ainda, de norma padrão de incidência tributária.

         A hipótese (descritor), através de seus aspectos material, espacial e temporal, traça o fato tributável – sempre lícito – que depois de materializado faz nascer a relação obrigacional estabelecida na consequência (prescritor). Assim, ocorrido o fato gerador (fato idêntico ao descrito como hipótese de incidência) nasce a consequente relação jurídica tributária – obrigacional – pela qual o fisco (sujeito ativo) tem o direito de exigir, e o contribuinte (sujeito passivo) tem o dever de prestar, o objeto da obrigação (crédito tributário).

         O direito, como ordem coativa que é, possui instrumentos que motivam os destinatários das normas jurídicas a cumpri-las de forma espontânea.

         A norma jurídica prescreve o que deve ser, mas é de pouca ou nenhuma valia, para a regulação de condutas, se a violação dessa norma não for devidamente sancionada. Com certeza de nada adianta o ordenamento jurídico estabelecer que a conduta “subtrair coisa móvel alheia mediante grave ameaça ou violência a pessoa” é proibida e considerada criminosa se uma penalidade bastante severa não for estabelecida para quem praticá-la.

Conclui-se, portanto, pela necessidade de haver uma outra norma jurídica que descreva – hipótese – o descumprimento de uma conduta – omissiva ou comissiva –, implicando uma outra relação jurídica (consequência). Ou seja, uma consequência decorrente da inobservância da norma de conduta.

À norma jurídica que impõe comportamentos damos a denominação de norma impositiva. De norma sancionatória chamamos aquela que descreve como hipótese a violação da norma impositiva, tendo como consequência uma sanção. Percebe-se que as hipóteses das normas impositivas sempre veicularão situações lícitas, enquanto as das normas sancionatórias se ocuparão da descrição de ilícitos.

         Exemplifiquemos: uma norma jurídica impositiva (norma de incidência tributária) estabelece que aquele que prestar serviços no território do Município X (hipótese) deverá recolher aos cofres do citado Município o Imposto Sobre Serviços – ISS (consequência). Para induzir o contribuinte – destinatário da norma impositiva – a cumpri-la, uma norma sancionatória determina que se o contribuinte deixar de recolher o Imposto Sobre Serviços – ISS (hipótese) ser-lhe-á aplicada uma multa correspondente a 200% do valor do tributo não recolhido (consequência).       Aproveitando o exemplo acima oferecido: não pagando o Imposto Sobre Serviços – ISS, o contribuinte infrator deverá pagar, além do tributo corrigido, a multa (de 200%) decorrente do desrespeito à norma jurídica impositiva. Não o fazendo voluntariamente, ao fisco é outorgado o direito de requerer ao Estado-juiz que force o contribuinte a cumprir as obrigações (recolhimento do tributo atualizado com o acréscimo da multa).

Infelizmente apesar de as normas sancionatórias objetivarem o cumprimento das normas impositivas, muitos dos seus destinatários deixam de cumprir ambas, ou seja, não só se comportam conforme vedado pela norma impositiva como não se submetem, espontaneamente, à respectiva sanção.

         Norberto Bobbio ressalta que a força é necessária à realização do direito:

 

“Dizendo que o Direito é fundado em última instância sobre o poder e entendendo por poder o poder coercitivo, quer dizer, o poder de fazer respeitar, também recorrendo à força, as normas estabelecidas, não dizemos nada diferente daquilo que repetidamente afirmado em relação ao Direito como conjunto de regras com eficácia reforçada. Se o Direito é um conjunto de regas com eficácia reforçada, isso significa que um ordenamento jurídico é impensável sem o exercício da força, isto é, sem um poder. Colocar o poder como fundamento último de uma ordem jurídica positiva não quer dizer reduzir o Direito à força, mas simplesmente reconhecer que a força é necessária para a realização do Direito”.[4]

 

         A regulação dos comportamentos demanda medidas que atuem sobre a vontade dos legislados, levando-os a se comportarem tal como pretendido pelo legislador. Isto confere eficácia social[5] à norma.

         Estes conceitos são interessantes pelo fato que, tal como será visto adiante, tributo e multa não se confundem, e essa diferenciação é importante para a compreensão do alcance do princípio constante do artigo 150, IV, da Constituição Federal.

 

         2. Tributo e Multa

 

         Considerando o objetivo deste modesto trabalho, e tendo em vista o disposto no artigo 150, IV, da Constituição Federal é importante estabelecermos a diferença entre tributo e multa.

         O artigo 3º do Código Tributário Nacional define tributo como sendo “toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada”.[6]

Nota-se que referido artigo é expresso ao dispor que tributo “é toda prestação pecuniária compulsória (...), que não constitua sanção de ato ilícito, ...”. Não há duvida de que somente um fato jurídico lícito implica a relação jurídica obrigacional que tem como objeto o tributo. Dito de outra forma, tributo não pode ser interpretado como penalidade imposta àquele que comete algum ato ilícito.

Tributo não é multa. Se um contribuinte deixa de recolher um determinado tributo até a data de seu vencimento, ser-lhe-á aplicada uma multa, e esta não se confunde com o tributo não quitado.

Todos os fatos descritos como hipóteses de incidência dos tributos são, sem nenhuma exceção, lícitos, como por exemplo: prestar serviços, ser proprietário de imóvel urbano, realizar operação de venda e compra de mercadorias.

Quando a lei descrever como hipótese um comportamento ilícito, como por exemplo, a não emissão de notas fiscais, a consequência normativa nunca será uma relação jurídica tributária que legitime o fisco a cobrar tributo, mas sim multa.

Como bem ensina Paulo de Barros Carvalho “os acontecimentos ilícitos vêm sempre atrelados a uma providência sancionatória e, fixando o caráter lícito do evento, separa-se, com nitidez, a relação jurídica do tributo da relação jurídica atinente às penalidades exigidas pelo descumprimento de deveres tributários”.[7]

Até por isso sugerimos que tributo é a prestação pecuniária compulsória decorrente da materialização do fato (fato gerador) descrito como hipótese de incidência, sem natureza sancionatória, prevista e exigível nos estritos termos da lei.

         Não há dúvidas, portanto, de que tributo e multa não se confundem, não havendo nenhuma semelhança entre ambos.

         Com o tributo o Estado busca manter abastecidos os seus cofres para realizar todas as atividades que lhe foram atribuídas. Já pela multa, objetiva-se ter uma força motivadora de comportamentos lícitos, fazendo com que os contribuintes cumpram de forma correta e espontânea suas obrigações tributárias.

Para forçar os contribuintes a se comportarem conforme pretendido pelo ordenamento, ou seja, para que cumpram suas obrigações tributárias, as penalidades são previstas como consequências pelo desrespeito à legislação tributária. Almeja-se impedir que ao Estado falte dinheiro, pois isto ocorrendo colocará em risco o interesse público, haja vista que o povo depende de bens e serviços prestados pelo Estado, atividades estas que ficam comprometidas sem recursos.

         Enquanto a finalidade dos tributos é o abastecimento dos cofres públicos, as multas objetivam penalizar o contribuinte que decide não cumprir suas obrigações tributárias.

Estevão Horvath explica que “a multa busca punir o contribuinte faltoso com suas obrigações (como busca reprimir, punindo, qualquer comportamento contrário à ordem jurídica). Destarte, os princípios que regem as infrações são distintos daqueles que informam a tributação. Há diferença ontológica, o que não permite a comparação de uma situação com a outra”.[8]

 

         3. O confisco

 

Uma das maiores dificuldades no estudo do Direito Tributário nos parece ser a identificação do marco que separa as situações em que há o confisco daquelas em que isso não ocorre. Por esse motivo, e para tentarmos melhor compreender o que vem a ser o confisco, nos parece oportuna a análise de algumas posições doutrinárias.

Veremos que enquanto alguns autores entendem que o confisco ocorre quando o Estado absorve patrimônio particular sem oferecer uma contraprestação, outros sustentam que o confisco é uma penalidade.

Escorado no Black’s Dictionary, Fábio Burn Goldschmidt defende que o confisco é pena:

 

“[...] ato de apreende a propriedade em prol do Fisco, sem que seja oferecida ao prejudicado qualquer compensação em troca. Por isso, o confisco apresenta o caráter de penalização, resultante da prática de algum ato contrário à lei. É essa a definição encontrável no clássico Black’s dictionary: ‘Confiscation – Act of Confiscating. The seizure of private property by the government without compensation to the owner, often as a consequence of conviction for crime, or because possession or use of property was contrary to law’.”[9]

 

De Plácido e Silva, com muita propriedade, ensina que:

 

“CONFISCO. Ou confiscação, é vocábulo que se deriva do latim confiscatio, de confiscare, tendo o sentido de ato pelo qual se apreendem e se adjudicam ao fisco bens pertencentes a outrem, por ato administrativo ou sentença judiciária, fundados em lei.

Em regra, pois, o confisco se indica uma punição. Quer isto dizer que sua imposição, ou decretação, decorre da evidência de crimes ou contravenções praticados por uma pessoa, em virtude do que, além de outras sanções, impõe a lei a perda de todos ou parte dos bens em seu poder, em proveito do erário público.

Por esta forma, o confisco ou confiscação pode ser total ou parcial.

Total ou geral quando abrange todo o patrimônio do condenado; parcial, quando somente incide sobre uma certa porção de bens.

O confisco se efetiva preliminarmente pela apreensão ou pelo seqüestro. Mas, não pode ser tomado por nenhuma destas medidas judiciárias.

Êle é, em verdade, o ato de adjudicação dos bens ao patrimônio do Estado, em virtude de determinação legal ou qualquer outro ato que o autorize.

Em matéria fiscal, o confisco indica o ato de apreensão de mercadoria contrabandeada ou que

seja posta no comércio em contravenção às leis fiscais. Dá-se a apreensão e o poder público a confisca para cobrar-se dos impostos e das multas devidas. Mesmo neste caso, embora não se adjudique ao erário a soma de mercadorias apreendidas, adjudica-se o seu preço, isto é, o seu valor.

(...) Na linguagem penal, confisco é ato de apreensão, autorizado pelo juiz, dos instrumentos e do produto do crime (sic)”[10]

 

Antonia Agulló Agüero sustenta que, verbis:

 

“O sentido tradicional do termo confisco é o de pena (pena consistente na privação coativa dos bens do sujeito) (...)”.[11]

 

Para Ramón Valdés Costa, in verbis:

 

“Em princípio, o confisco como instrumento normal de privação dos bens dos particulares em favor do fisco está desprovida de fundamento jurídico constitucional. Apenas pode encontrar fundamento como pena, e os direitos positivos, inclusive o uruguaio, conhecem mais de um caso justificado dessa aplicação.[12]

 

         Luiz Felipe Silveira Delfini, por sua vez, entende que confisco “é punição, pela qual se adjudicam ao fisco bens, por ato administrativo ou sentença, com supedâneo em lei”.[13]

 

         De outra banda, sem se referir ao confisco como penalidade Sampaio Dória assevera que:

        

“Confisco é a absorção da propriedade particular, pelo Estado, sem justa indenização”.[14]

 

Aires Barreto, com entendimento muito semelhante, predica que confisco é “(...) a absorção (...) da propriedade privada, sem indenização”.[15]

 

A Constituição Federal de 1988, como se observa de seu artigo 5º, no inciso XLV prevê o confisco como forma de pena, estabelecendo que

 

“nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido.”

 

Nos parece razoável concluir que confisco é a apreensão de patrimônio particular sem qualquer espécie de indenização, constitucionalmente admitida em caráter excepcional como penalidade de natureza civil ou criminal.

         Alcançada esta breve noção do que vem a ser o confisco, nos parece interessante analisar quando ocorre.

Como bem destacou José Eduardo Soares de Melo, “é difícil estipular o volume máximo da carga tributária, ou fixar um limite de intromissão patrimonial, enfim, o montante que pode ser suportado pelo contribuinte. O poder público há de se comportar pelo critério da razoabilidade, a fim de possibilitar a subsistência ou sobrevivência das pessoas físicas, e evitar as quebras das pessoas jurídicas, posto que a tributação não pode cercear o pleno desempenho das atividades privadas e a dignidade humana”.[16]

Já tivemos a oportunidade de dizer que “tributo confiscatório é aquele demasiadamente oneroso, capaz de retirar parcela substancial da propriedade ou renda do contribuinte. (...). A Lex Suprema, vedando a instituição de tributos com o fim de confisco, protege a propriedade e a renda dos contribuintes e, por via reflexa, fontes de abastecimento dos cofres públicos”.[17]

         Em exemplos extremos é fácil identificar o confisco, como seria no caso de o IPVA ser calculado pela aplicação da alíquota de 100% sobre o valor do veículo. Porém, na maioria das situações, apesar de algumas alíquotas serem bastante elevadas, não se tem a certeza de ocorrer ou não o confisco.

         A título de ilustração, nada impede que se entenda que o Imposto sobre a Renda calculado pela alíquota de 27,5% é confiscatório. Afinal no curto período de um ano o contribuinte é obrigado a entregar aos cofres públicos federais um montante correspondente a mais de três meses de seus rendimentos.

         A vedação do confisco tributário não deve ser analisada considerando cada um dos tributos isoladamente, mas sim toda a carga suportada pelo contribuinte. Para exemplificar, o Imposto Sobre Serviços (ISS) calculado pela alíquota de 15% pode não ser considerado confiscatório, mas se levarmos em conta outros tributos conjuntamente (IRPJ, COFINS, CSLL etc.) a conclusão pode ser a de que está havendo o confisco.

         Hugo de Brito Machado predica que “o caráter confiscatório do tributo deve ser avaliado em função do sistema, vale dizer, em face da carga tributaria resultante dos tributos em conjunto”.[18]

         É portanto com base na tributação como um todo que a ocorrência do confisco deve ser analisada.

Discorrendo sobre a caracterização do confisco, Ives Gandra da S. Martins assevera que “(...) sempre que a tributação agregada retire a capacidade de o contribuinte se sustentar e se desenvolver (ganhos para suas necessidades essenciais e ganhos superiores ao atendimento destas necessidades para reinvestimento ou desenvolvimento), estar-se-á perante o confisco”.[19]

Ylves José de Miranda Guimarães ensina que “poder-se-á sustentar ser inconstitucional, à sombra do preceito em tela [princípio da vedação ao confisco], lei tributária absorvente, senão integralmente, mas de parcela ponderável da propriedade; aniquiladora direta da rentabilidade da empresa, mas não decorrente esta de sua boa ou má administração; absorvedora da totalidade dos rendimentos do contribuinte ou proibitiva de atividade moral e lícita”.[20]

Marilene Talarico M. Rodrigues observa que “ao vedar a utilização de tributos com efeito de confisco, a Constituição de 1988 em seu art. 150, IV, proíbe a instituição de tributos excessivamente onerosos, que acarretam a perda do patrimônio, da propriedade, estabelecendo que a lei regule o tributo de modo que ele não gere efeitos econômicos nocivos que o confisco geraria, ou seja, a tributação deve ser utilizada dentro daquilo que se possa considerar com razoabilidade, para não ensejar a perda de bens (grifamos)”.[21]

A carga tributária total deve ser razoável, de forma a não desfalcar o patrimônio do contribuinte ou aniquilar a sua atividade, preservando a economia e a própria fonte de arrecadação do Estado.

Percebe-se, sem dificuldades, que o princípio da vedação ao confisco está diretamente relacionado com a capacidade contributiva. Ora, se a Constituição Federal garante o direto de se contribuir dentro da capacidade econômica, não pode a tributação ser capaz de acarretar a perda da propriedade ou de inviabilizar a continuidade das atividades que geram o dever de recolher os tributos.

Pelos tributos o Estado obtém recursos, mas deve fazê-lo preservando as respectivas fontes, e se possível, fomentando seu crescimento, pois a melhora das finanças públicas depende do crescimento da economia.

No magistério de Hugo de Brito Machado “o tributo deve ser um ônus suportável, um encargo que o contribuinte pode pagar sem sacrifício do desfrute normal dos bens da vida. Por isto mesmo é que não pode ser confiscatório”.[22] Noutra obra, o mestre conclui que “tributo com efeito de confisco é tributo que, por ser excessivamente oneroso, é sentido como penalidade”.[23]

Seguindo a mesma linha de raciocínio, Fabio Burn Goldschmidt explica que “a tributação que tem ‘efeito de confisco’ é aquela que realiza a tomada da propriedade do particular, e soa como pena, tem o efeito de pena, gera a sensação de penalização ilegítima (porque não lastreada na prática de um ilícito)”.[24]

De fato, se o dever de recolher tributos é uma consequência da realização de um fato jurídico lícito, não pode ter efeito de penalidade – confisco.

Lamentavelmente, no Brasil, a sensação de confisco é diariamente sentida pelos contribuintes. Isto porque, apesar de o contribuinte suportar heroicamente a absurda carga tributária que lhe é imposta, recebe muito pouco em troca. Não é novidade que, praticamente em todas as suas atividades, o Estado deixa muito a desejar, não parecendo agir proporcionalmente ao que arrecada. Consequentemente, como se não bastasse ter que recolher grandes valores a título de tributos, o particular, quando em condições, ainda precisa gastar muito dinheiro para, dentre outras necessidades, ter bom ensino na rede privada, conseguir atendimento médico e hospitalar satisfatórios e eficientes, e contratar segurança particular.

 

         4. O artigo 150, IV, da Constituição Federal

 

         Ao estabelecer as limitações do poder de tributar, a Constituição Federal, em seu artigo 150, IV, é clara ao dispor, in verbis:

 

“Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

...

IV - utilizar tributo com efeito de confisco;”[25]

 

Como se verifica da redação desse dispositivo constitucional o “tributo” não pode ter efeitos confiscatórios. Nota-se que a Lex Suprema não faz referência à penalidade. Na realidade, a Constituição Federal prevê a possibilidade de a lei estabelecer “o perdimento de bens” como punição (art. 5º, XLV).

Assim, não nos parece haver obstáculo para que o legislador estabeleça penalidades confiscatórias, valendo lembrar que estas não se confundem com penas onerosas. Apenas para exemplificar, se uma lei estabelece que o não pagamento do ICMS tem como consequência uma penalidade correspondente a 200% do valor do imposto não recolhido, a multa não é confiscatória, mas sim onerosa.

Com efeito, o dispositivo constitucional é indiscutivelmente expresso ao preceituar que apenas os tributos são protegidos pelo princípio em comento. Com a devida vênia, não poderia ser de outra forma, pois estar-se-ia protegendo o sonegador, vez que uma penalidade leve, muitas vezes, conduz ao desejo de cometer infrações, pois é bem possível não haver uma fiscalização, e ainda que esta constate o ilícito, a pena será branda.

Hugo de Brito Machado, com a coerência que lhe é peculiar, ensina que “a vedação do confisco é atinente ao tributo. Não à penalidade pecuniária, vale dizer, à multa. O regime jurídico do tributo não se aplica à multa, porque tributo e multa são essencialmente distintos. O ilícito é pressuposto essencial desta, e não daquele”.[26]

Para Estevão Horvath o rigor científico não permite a conclusão de que o princípio tributário do não-confisco seja estendido à multa, pois os princípios que regem as infrações são distintos daqueles que informam a tributação.[27]

Como bem ponderou o Min. Francisco Falcão ao julgar o REsp nº 660.692/SC: “antes de se pronunciar uma conclusão sobre o tema, cumpre evidenciar qual é a natureza da multa moratória. Sem muito esforço, constata-se que se trata de uma penalidade, revestida de caráter preventivo e punitivo, não tendo disposição característica de tributo. Destarte, conclui-se que a multa moratória não está adstrita à regra de não confisco, que deve ser seguida apenas para fins de fixação de exação. Pelo contrário, deve, em regra, ser aplicada sem indulgência, evitando-se futuras transgressões às normas que disciplinam o sistema de arrecadação tributária, não merecendo respaldo a pretensão do recorrente de ver reduzida tal penalidade.”

         Hugo de Brito Machado ainda observa que “no plano estritamente jurídico, ou plano da Ciência do Direito, em sentido restrito, a multa distingue-se do tributo porque em sua hipótese de incidência a ilicitude é essencial, enquanto a hipótese de incidência do tributo é sempre algo lícito. Em outras palavras, a multa é necessariamente uma sanção de ato ilícito, e o tributo, pelo contrário, não constitui sanção de ato ilícito”.[28]

         Misabel Abreu Machado Derzi ensina que “no exame dos efeitos confiscatórios do tributo, deve ser feita abstração de multas e juros acaso devidos. As sanções, de modo geral, desde a execução judicial até as multas, especialmente em caso de cumulação, podem levar à perda substancial do patrimônio do contribuinte, sem ofensa ao direito”.[29]

         É preciso que a multa seja realmente onerosa, pois seu fim é de suma importância para que o Estado possa atender o interesse público. O produto da arrecadação tributária é de grande relevância para que o Estado forneça aos cidadãos hospitais, equipamentos para atendimento à saúde, educação, segurança, infra-estrutura e tudo o mais referente à dignidade a pessoa humana. Inegável o interesse público na proteção da arrecadação tributária, sendo a onerosidade da multa uma ferramenta importantíssima para tal fim.

         Como bem observou Hugo e Brito Machado em sua obra já mencionada, não podemos deixar de concordar que uma penalidade correspondente a 300% do valor do tributo não recolhido é um instrumento relevante e eficiente no combate à sonegação fiscal. Estabelecida em lei, o contribuinte tem absoluto conhecimento da consequência pela sua conduta ilícita, ficando por sua conta e risco a violação da norma tributária.

Advogar em defesa da tese de que a multa decorrente de ilícitos tributários não pode ser estabelecida em patamares bastante onerosos parece ser o mesmo que defender que a prática dos ilícitos tributários é protegida pelo direito. Isto aniquila a eficácia social da norma sancionatória; afinal o contribuinte, mesmo ciente do alto valor da multa, se vê com maior tranquilidade para cometer ilícitos tributários, pois alagará o confisco da multa, em razão de sua onerosidade, e não será punido com o rigor necessário.

Ora, as penalidades leves ou “muito razoáveis” podem ser facilmente repassadas pelos contribuintes, ou até mesmo diluídas nos preços, o que, como já bem observou Hugo de Brito Machado, torna a sanção totalmente sem efeito, sendo transformada num simples “tributo de exigência eventual”.

         Entendemos, portanto, que desde que devidamente previstas em lei as multas podem, e na verdade devem, ser estabelecidas com severidade conforme a gravidade da infração, para que com isto o contribuinte não se veja tentado a cometer os ilícitos tributários, e entregue corretamente recursos ao Estado que deles depende para o atendimento das necessidades públicas. A jurisprudência possui inúmeras manifestações nesse sentido, in verbis:

 

“MULTA MORATÓRIA - ICMS - Natureza de sanção administrativa, não se cogitando do princípio da vedação ao confisco - Inaplicabilidade do CDC - Fixação em 20%, conforme art. 87, da Lei n. 6.374/89, com redação da Lei n. 9.399/96 - Cumulação com juros e correção monetária que se admite – Aplicabilidade – Recurso da embargante desprovido

JUROS DE MORA - Embargos do devedor – Execução fiscal - ICMS - Aplicabilidade da Taxa SELIC - inocorrência de afronta ao § 1º do art. 161 do CTN e ao inc. I, do art. 150, da CF - Cabimento - Recurso da Fazenda do Estado provido.”

(TJ/SP – 8ª C. Dir. Púb., Ap. s. Rev. nº 555.188-5/8-00, Rel. Des. Rubens Rihl, julg. 19.08.2009)

 

 

“EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL - Auto de Infração - Creditamento indevido de ICMS - I. Operação realizada com base em notas fiscais declaradas inidôneas, emitidas à época em que a empresa vendedora já havia encerrado as suas

atividades - Autuação e imposição de multa adequadas - II. O princípio constitucional do não confisco não se reporta às sanções por atos ilícitos, tendo sido a multa aplicada na exata proporção de sua finalidade de inibir o contribuinte à prática de determinadas condutas - III. Juros moratórios calculados de acordo com o artigo 96, III, da Lei Estadual n° 6.374/89 -

IV. Legalidade da aplicação da taxa SELIC a partir de 01.01.99, conforme previsto na Lei n° 10.175/98 - V. Legalidade da correção pela UFESP. Recurso não provido.”

(TJ/SP – 3ª C. Dir. Púb., Ap. c/ Rev. nº 924.228-5/6-00, Rel. Des. Magalhães Coelho, julg. 11.08.2009)

 

 

“MULTA. PRINCIPIO DO NÃO CONFISCO. O princípio constitucional do não-confisco não se reporta às sanções por atos ilícitos, pois elemento da estrutura limitativa do Estado ao poder de tributar, de natureza ôntica diversa das multas. O percentual da multa moratória, além disso, tem expressa previsão legal e constitui meio inibitório para que o contribuinte não protraia o pagamento do tributo. Não se tratando de relação de consumo, não há justificativa para aplicação da legislação protetiva do Código de Defesa do Consumidor. Recurso e remessa necessária desprovidos.”

(TJ/SP – 7ª C. Dir. Púb., Ap. Cív. s/ rev. nº 312.116-5/8-00, Rel. Des. Nogueira Diefenthaler, julg. 21.08.2006)

No mesmo sentido: Ap. Cív s/ Rev. n° 527.887-5/8-00; Ap. Cív s/ Rev. n° 358.099-5/5-00; Ap. Cív. s;/ Rev. nº 272.095.5/0-00; Ap . Cív. s/ Rev; nº 568.104-5/6-00; Ap. Cív. s/ Rev. nº 251.106-5/9-00; Ap. Cív. s/ Rev. nº 352.734-5/0-00; Ap. Cív. s/ Rev. nº 450.375-5/6-00; Ap. Cív. s/ Rev. nº 238.156-5/0-00)

 

 

“TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL - AÇÃO ANULATÓRIA DE DÉBITO FISCAL - SONEGAÇÃO - MULTA - PERCENTUAL - LEGALIDADE - JUROS MORATÓRIOS - TAXA SELIC - MATÉRIA NÃO VEICULADA NA INICIAL - EXAME - VEDAÇÃO.

1. A regra prevista no artigo 150, inciso IV, da Constituição Federal, que veda a utilização do tributo com efeito de confisco, não atinge o percentual das multas fixadas para o caso de descumprimento da obrigação tributária, uma vez que se trata de penalidade imposta àqueles que, de alguma forma, venham a causar prejuízos ao erário, em razão de determinada infração prevista em lei.

2. O pedido inicial restringe a lide, não devendo o magistrado emitir provimento jurisdicional diverso daquele pleiteado pela parte, sob pena de nulidade. Assim, verificado que a matéria relativa à aplicação da taxa selic não foi ventilada na petição inicial, nem enfrentada na r. sentença hostilizada, resta inviabilizado o seu exame pelo tribunal.
3. Recurso conhecido e não provido.”

(TJ/DF – 3ª T. Cív., Ap. Cív. nº 2004.01.1.088248-9, Rel. Des. Humberto Adjuto Ulhôa, julg. 29.11.2006)

 

“APELAÇÃO CÍVEL - PRELIMINAR: DO CERCEAMENTO DE DEFESA - REJEITADA - AÇÃO DE EXECUÇÃO FISCAL - CERTIDÃO DE DÍVIDA ATIVA - TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL - DÍVIDA ATIVA INSCRITA - PRESUNÇÃO DE CERTEZA E LIQUIDEZ - PRINCÍPIO DO NÃO CONFISCO - OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA - MULTA-SANÇÃO - ADMINISTRADOR PÚBLICO - PRINCÍPIO DA LEGALIDADE - RECURSO IMPROVIDO

(...)

4) O princípio do não confisco, estabelecido no art. 150, IV, CF, se aplica a tributo, e não à multa.

5) A obrigação tributária nasce pela simples realização do fato descrito na hipótese de incidência prevista em lei, sendo, portanto, compulsória, não apresentando caráter sancionador.

6) A multa-sanção tem caráter inibitório, punitivo, visando penalizar o infrator que não cumpriu com a obrigação fiscal.

7) O administrador público deve respeitar o princípio da legalidade, só sendo permitido fazer o que a lei autoriza.

8) Negado provimento ao recurso.”

(TJ/ES – 2ª C. Cív., Ap. Cív. nº 011020656275, Rel. Des. Ewerton Schwab Pinto Júnior, julg. 30.08.2005)

 

 

“EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL - CONTRIBUIÇÕES PREVIDENCIÁRIAS NÃO RECOLHIDAS E MULTA POR INFRAÇÃO DE OBRIGAÇÕES ACESSÓRIAS - LEGITIMIDADE DAS EXIGÊNCIAS, SALVO UMA CUJO FUNDAMENTO NÃO DIZ RESPEITO À NATUREZA DA EXECUTADA COMO CONDOMINIO RESIDENCIAL - RAZOABILIDADE DA MULTA ADMINISTRATIVA - AUSÊNCIA DE CARÁTER CONFISCATÓRIO - INDEVIDA REDUÇÃO EM ISONOMIA COM MULTA DAS RELAÇÕES DE CONSUMO - APELAÇÃO DO INSS, REMESSA OFICIAL E RECURSO ADESIVO DA EMBARGANTE DESPROVIDOS.

(...)

IV - A multa administrativa, aplicada por descumprimento de obrigações tributárias acessórias, que visa coibir a prática de infrações fiscais pelos contribuintes, mostrando-se adequada às finalidades de sua instituição, atende ao princípio da razoabilidade, pelo que não têm caráter confiscatório. Às multas administrativas, por não se qualificarem como ‘tributo’, não se aplica o princípio do constitucional que veda a utilização de tributo com efeito de confisco (CF, artigo 150, inciso IV), pois seus valores são fixados não em proporção com a capacidade econômica do contribuinte, mas sim objetiva sancionar e coibir o descumprimento da obrigação tributária prevista na lei, em repressão de condutas ilícitas conforme sua gravidade. Caso de multas por descumprimento de obrigações acessórias que se mantém.

(...)”

(TRF – 3ª Rg. – 2ª T.,  Apel. nº 1999.03.99.110932-0, Rel. Des. Fed. Souza Ribeiro, Julg. 04.08.2009)

 

 

“EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. MULTA. CULPA. REDUÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. CONFISCO. JUROS MORATÓRIOS. TERMO INICIAL. ARTIGO 192, PARÁGRAFO 3º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL.

1. O julgador não pode, por critério subjetivo, reduzir o percentual da multa, mormente porque tarefa legislativa.

2. O princípio constitucional do não-confisco é dirigido aos tributos e não às multas moratórias.

3. A incidência da multa independe da intenção do agente em burlar ou não a fiscalização, ocorrendo pelo simples inadimplemento do tributo. (...)”

(TRF – 4ª Rg. – 1ª T., Ap. Cív. nº 2001.04.01.041454-3/RS, Rel. Des. Federal Wellington M. de Almeida, julg. 30.06.2004)

 

 

“PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. MULTA. CONFISCO. NÃO CARACTERIZAÇÃO.

1- Tratando-se de multa moratória, penalidade imposta à título de sanção pelo descumprimento da obrigação tributária, não se aplicam os princípios do confisco e da capacidade tributária atinentes aos tributos.

2- Procede a aplicabilidade de multa em 100%, consoante previsto em lei.

3- Precedentes: TRF 5ª Região, AC 20325-AL e AMS 77023-SE, Rel. Des. Fed. Conv. Élio Wanderley Filho.4- Apelação improvida”

(TRF – 5ª Rg. – 1ª T., Apel. nº 2002.84.00.004585-7, Rel. Des. Fed. Francisco Wildo, julg. 28.04.2005)

 

 

“EXECUÇÃO FISCAL. ICMS. Não se conhece matéria não apreciada em sentença, uma vez que não foi devolvida. O princípio do não confisco se dirige aos tributos e não as sanções, apesar de a multa cobrada não ser confiscatória. Juros cobrados na CDA não ultrapassam o patamar legal. Recurso improvido.”

(TJ/SP – 6ª C. “A”, Ap. Cív. nº 220.693-5/4-00, Rel. Des. Paulo Fadigas, julg. 18.11.2005). No mesmo sentido: Ap. Cív. s. Rev. nQ 205.821-5/0-00; Ap. Cív. nº 201.056-5/9-00)

 

 

“AÇÃO ORDINÁRIA - ISS - Parcelamento - Correção monetária e multa em conformidade com a legislação, conforme deu conta o laudo pericial - Juros moratórios - Redução a 1% ao mês - Cabimento, pois é o percentual estabelecido em lei municipal e se harmoniza com o princípio da ísonomla constitucional - Multa moratória de 50% - Confisco - Não ocorrência, pois não implica inviabilidade do direito de propriedade e o princípio do não confisco refere-se ao tributo e não a multa (art. 150, IV, CF) - Sucumbência - Município que sucumbi: de parte mínima - Ônus que cabe à autora - Art. 21, Parágrafo Único do CPC - APELO DO MUNICÍPIO PARCIALMENTE PROVIDO PARA ESSE FIM E NÃO PROVIDO O DA AUTORA.”

(TJ/SP – 15ª C. Dir. Púb., Ap. Cív. c/ Rev. nº 532.811-5/4-00, Rel. Des. Rodrigues de Aguiar, julg. 01.06.2006)

 

 

 “TRIBUTÁRIO. EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL. CORREÇÃO MONETÁRIA. UFIR. POSSIBILIDADE. MULTA TRIBUTÁRIA. CONFISCO. AUSÊNCIA DE CONFIGURAÇÃO.

1) Os créditos tributários estaduais podem ser corrigidos monetariamente pela UFIR.

2) A vedação ao confisco prevista na Constituição de 1988 deve ser vista como um princípio de razoabilidade na tributação. As multas tributárias que buscam direcionar condutas não se enquadram na vedação constitucional. Ademais, a vedação ao confisco guarda relação com o próprio tributo, e não com a penalidade pecuniária. Recurso da embargante desprovido. Provido o do estado.”

(TJ/RS – 2ª C. Cív., Ap. Cív. nº 70012798971, Rel. Des. Arno Werlang, julg. 03.05.2006)

 

 

“TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL: CDA - PRESUNÇÃO DE LIQUIDEZ E CERTEZA. ICMS: LANÇAMENTO POR HOMOLOGAÇÃO - DESNECESSIDADE DE PRÉVIA NOTIFICAÇÃO. MULTAS: NÃO CARACTERIZAÇÃO DE CONFISCO. TAXA SELIC: LEGITIMIDADE.

A alegação, desacompanhada de prova, não é suficiente para abalar a presunção de certeza e liquidez da CDA. Nos tributos sujeitos ao lançamento por homologação, se o contribuinte declara a ocorrência do fato gerador, mas não paga o respectivo tributo, desnecessária se toma a notificação deste para que validamente se promova sua inscrição em dívida ativa e a conseqüente execução do crédito. A regra do não-confisco não se aplica ao regime das penalidades, que têm por finalidade garantir a inteireza da ordem jurídica tributária e não se chocam com o livre exercício de atividade econômica. É legítima a utilização da taxa SELIC para cálculo dos juros de mora dos créditos tributários.”

(TJ/MG – 4ª C. Cív., Ap. Cív. nº 1.0024.04.315215-6/001, Rel. Des. Des. Audebert Delage, julg. 03.05.2007)

 

 

“EMBARGOS À EXECUÇÃO FISCAL - MULTA - CONFISCO - VEDAÇÃO INEXISTENTE - JUROS DE MORA - PREVISÃO LEGAL - CORREÇÃO MONETÁRIA – ‘BIS IN IDEM’ - PROVA - A Constituição da República, em seu art. 150, IV, veda ao ente público utilizar-se do tributo com efeito de confisco, porém tal vedação não se estende aos seus acréscimos reconhecidos por lei, como a multa moratória, a qual poderá ser aplicada de modo até a assumir o caráter de confisco. A taxa dos juros de mora é fixada nos ditames do art. 161, § 1º, do CTN, os quais têm natureza de ordem pública e cuja eficácia é ‘erga omnes’, sendo que a sua aplicação visa proteger o interesse público, não possuindo correlação com o disposto no art. 1.092 do Código Civil, que é dirigida, exclusivamente, às relações entre particulares. Não provando a parte a suposta incidência dúplice da correção monetária sobre o débito fiscal executado, é de se inacolher a alegação correspondente. Apelação desprovida.”

(TJ/MG – 3ª C. Cív., Ap. Cív. Nº 000.175.355-7/00, Rel. Des. LUCAS SÁVIO GOMES, julg. 09.11.2000)

 

 

“TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE RENDA. PESSOA FÍSICA. INCORPORAÇÃO DE IMÓVEL PARA A INTEGRALIZAÇÃO DE CAPITAL SOCIAL DE PESSOA JURÍDICA. INCIDÊNCIA DO TRIBUTO. TAXA SELIC. CRÉDITOS TRIBUTÁRIOS DA FAZENDA. APLICAÇÃO. MULTA MORATÓRIA. REDUÇÃO. IMPOSSIBILIDADE.

(...)

III - A multa moratória não está adstrita à regra de não confisco, que deve ser seguida apenas para fins de fixação de exação. Pelo contrário, deve, em regra, ser aplicada sem indulgência, evitando-se futuras transgressões às normas que disciplinam o sistema de arrecadação tributária, não merecendo respaldo a pretensão do recorrente de ver reduzida tal penalidade. Precedente: AgRg no AG nº 436.173/BA, Rel. Min. José Delgado, DJ de 05/08/2002.

IV - Recurso especial improvido.”

(STJ – 1ª T., REsp n º 660.692/SC, Rel. Min. Francisco Falcão, julg. 21.02.2006)

 

 

“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL. INEXISTÊNCIA DE OMISSÃO NO ACÓRDÃO RECORRIDO. MULTA POR INFRAÇÃO E MULTA DE MORA. INSTITUTOS DISTINTOS. CUMULAÇÃO. CONFISCO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. LIBERDADE NAS RAZÕES DE DECIDIR.

(...)

7. A jurisprudência é pacífica no sentido de que multa não é tributo, podendo ela ter efeito confiscatório.

9. Agravo regimental não provido.”

(STJ – 1ª T., AgRg no Ag 436.173/BA, Rel. Min. José Delgado, julg. 21.05.2002)

 

 

“TRIBUTÁRIO. FRAUDE. NOTAS FISCAIS PARALELAS. PARCELAMENTO DE DÉBITO. REDUÇÃO DE MULTA. LEI Nº 8.218/91. APLICABILIDADE. INOCORRÊNCIA DE CONFISCO. TAXA SELIC. LEI Nº 9.065/95. INCIDÊNCIA.

(...)

3. É legal a cobrança de multa, reduzida do percentual de 300% (trezentos por cento) para 150% (cinto e cinquenta por cento), ante a existência de fraude por meio de uso de notas fiscais paralelas, comprovada por documentos juntados aos autos. Inexiste na multa efeito de confisco, visto haver previsão legal (art. 4º, II, da Lei nº 8.218/91). ...”

(STJ – 1ª T., REsp nº 419.156/RS, Rel. Min. José Delgado, DJ 10.06.2002, p. 162)

 

         O Direito não pode, sob nenhum argumento, ser interpretado ou utilizado como proteção de atos ilícitos. Não é possível alargar o disposto no artigo 150, IV, da CRFB/1988 para amenizar a pena aplicada àquele que comete o ato ilícito.

         Em obra inteiramente dedicada ao estudo de princípios tributários constitucionais, o já citado Hugo de Brito Machado explica que “o princípio do não-confisco, segundo o qual é vedado ao Poder Público utilizar tributo com efeito de confisco, consubstanciado no art. 150, inciso IV, da vigente Constituição Federal, é necessário para tornar o tributo compatível com a garantia do livre exercício de atividades econômicas. Se fosse possível tributo confiscatório, estaria negada aquela garantia. Como a atividade econômica constitui o suporte mais geral da tributação, bastaria a instituição de tributo confiscatório para impedir o seu exercício. Tem-se, pois, que a garantia do não-confisco é na verdade um reforço, ou mesmo uma explicitação da garantia do exercício da atividade econômica. Às multas, porém, não se aplica aquela garantia, pois seria absurdo dizer que a Constituição garante o exercício da ilicitude. As multas têm como pressuposto a prática de atos ilícitos, e por isto mesmo garantir que elas não podem ser confiscatórias significa na verdade garantir o direito de praticar atos ilícitos. Sustentar que a garantia do não-confisco aplica-se às multas é defender claramente o direito de sonegar tributos. Afinal, as multas elevadas para a inobservância das leis tributárias constituem, com toda certeza, o meio mais eficaz no combate à sonegação”.[30]

         A finalidade do dispositivo constitucional (art. 150, IV, CRFB/1988) é proteger o contribuinte que pratica atos lícitos, e não ilícitos. Por mais tentadora que possa ser idéia de estender às multas o alcance do princípio da vedação ao confisco, não nos parece possível nem técnico.

         Entendemos, portanto, que o principio da vedação ao confisco não é aplicável às multas, pois estas se referem à proteção do interesse público na arrecadação tributária, para que o respectivo produto possa ser revertido ao povo através do oferecimento de bens e serviços. Não se pode sustentar que deve ser protegida a propriedade privada do contribuinte infrator em desfavor do interesse público

 

Conclusões

 

Tributo é uma prestação pecuniária compulsória decorrente da materialização do fato descrito como hipótese de incidência, sem natureza sancionatória, prevista e exigível nos estritos termos da lei. A multa, por outro lado, é uma sanção imposta àquele que comete o ilícito tributário. O tributo tem por origem a realização de condutas lícitas, a multa nasce da prática de ilícitos. Um não se submete ao regime jurídico do outro.

         A proteção constitucional é expressa ao limitar-se aos tributos, não sendo possível sua interpretação extensiva, de modo a prestigiar aquele que, por vontade própria, e sabendo das consequências, prefere se comportar de forma contrária à esperada pelo ordenamento jurídico e prejudicando a necessária arrecadação. Penalidades confiscatórias são diferentes de multas onerosas.

         É esperado que as multas sejam gravosas e, se necessário, confiscatórias, pois é através desses instrumentos que se combate a sonegação fiscal. Multas brandas não só mostram-se incapazes de desmotivar a conduta perniciosa como também podem ser repassadas pelos contribuintes nos custos operacionais, sendo até mesmo transferidas aos consumidores de bens e serviços.

 

CARLOS ALBERTO DEL PAPA ROSSI

Advogado, Especialista em Direito Tributário (PUC/SP), Especialista em Direito Processual Civil (PUC/SP), MBA com ênfase em Direito Empresarial (FGV/SP), Extensão Universitária em Direito Imobiliário (FMU), autor do livro “Introdução ao Estudo das Taxas” e de artigos publicados em revistas especializadas e eletronicamente.

 

*Proibida qualquer forma de reprodução sem autorização expressa, exceto para citações.

 

NOTAS:

 

(*) Este trabalho foi alterado apenas para fins de atualização, incluindo-se entendimentos doutrinários e jurisprudenciais posteriores à época de sua elaboração. Redigido em 1997 e atualizado em 2009.

[1] O artigo 5º, inciso II, da Constituição Federal assegura aos legislados que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Acreditamos que este dispositivo é de alcance total, de forma que sem lei ninguém está obrigado a recolher tributos. Porém, reforçando a garantia dos contribuintes, o artigo 150, inciso I, da Constituição Federal veda a exigência ou o aumento de tributos sem lei que assim estabeleça.

2 O artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal assegura aos legislados o direito de exigirem que o Estado-juiz se manifeste para proteger direito ou viabilizar a reparação do que foi lesado.

3 Alguns autores usam o termo aspecto no lugar de critério. Não há nenhuma implicação nisso. Deveras, ao escrever o livro Introdução ao estudo das taxas, fizemos uso de ambos os vocábulos. A idéia foi familiarizar o leitor para que não estranhasse o estudo da matéria em outras obras.

4 Teoria do ordenamento jurídico. 9. ed. Brasília: UnB, 1997. p. 66.

5 A norma jurídica possui eficácia social quando a expectativa normativa é alcançada, ou seja, quando os destinatários das normas se comportam como nelas prescrito.

6 Demos ênfase.

7 Curso de direito tributário. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 22.

8 O princípio do não-confisco no Direito Tributário. São Paulo: Dialética, 2002. p. 114.

9 O princípio do não-confisco no direito tributário. São Paulo: RT, 2003. p. 43.

10 Vocabulário Jurídico. 4. ed. Vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 1975. p. 395.

11 La prohibición de confiscatoriedad en el sistema tributario español. Revista de Direito Tributário, São Paulo, a. 11, nº 42, p. 29. Em espanhol: “El sentido tradicional del término confiscación es el de pena (pena consistente en la privación coactiva de los bienes de un sujeto)”.

12 Instituciones de Derecho Tributario. Buenos Aires: Depalma,1992. p. 483

13 Proibição de tributos com efeito de confisco. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 19.

14 Direito Constitucional e ‘Due Process of Law’. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 194

15 Vedação ao Efeito de Confisco. Revista de Direito Tributário nº 64. São Paulo: Malheiros, 1994. p. 97.

16 Curso de direito tributário. 2. ed. São Paulo: Dialética, 2001. p.34.

17 ROSSI, Carlos Alberto Del Papa. Introdução ao estudo das taxas. 2. ed. São Paulo: Pillares, 2005. p.64.

18 Curso de direito tributário. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 42.

19 Direitos fundamentais do contribuinte. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Direitos Fundamentais do Contribuinte. São Paulo: Revista dos Tribunais e Centro de Extensão Universitária, 2000. p. 49.

20 Os princípios e normas constitucionais tributários. São Paulo: Ed. Da Universidade de São Paulo, 1976. p. 52. Observação nossa.

21 Direitos fundamentais do contribuinte. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Direitos Fundamentais do Contribuinte. São Paulo: Revista dos Tribunais e Centro de Extensão Universitária, 2000. p. 327.

22 Curso .... ob cit. p. 43.

23 Os princípios jurídicos da tributação na constituição de 1988. 4. ed. São Paulo: Dialética, 2001. p. 129.

14 O princípio..., op. cit., p. 62.

25 Itálico nosso.

26 Curso ... ob. cit. p. 42.

27 O princípio ... ob. cit. p. 114.

28 Curso ... ob. cit. p. 42.

29 Nota 10.2.5, de atualização da obra de Aliomar Baleeiro, Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. 7. ed. Rio e Janeiro: Forense, 1997. p. 579.

30 Os princípios ... ob. cit. p. 106.

 

*Proibida qualquer forma de reprodução sem autorização expressa, exceto para citações.